11 outubro 2011

terra

primeiro o tempo come os ossos
em seguida os retratos.

22 junho 2011

Círculo

Dançávamos Kids do MGMT em meio a todas aquelas pessoas que em frívolo julgamento aparentavam ser todas iguais, uma forma maniqueísta de ver caso tomemos a semelhança de suas roupas descoladamente alternativas e os cabelos levemente arrepiados enquanto dançavam, cantavam, estendendo as mãos para cima ao iniciar uma música nova enquanto as luzes chacoalhavam em um frenesi aquático. Nós também chacoalhávamos, não tanto em frenesi porém mais em uma sedução, visto que há uma diferença na dança da sedução do que naquela de apreciação dos sons. Quando se seduz, a cabeça move-se mais lentamente como se uma câmera cinematográfica desse close nos menores detalhes do pescoço, além de geralmente também se olhar para cima como se se invocasse alguma força misteriosa de dentro, talvez algo assim profundo..., a ponto de mexermo-nos lentamente como se não milimetricamente planejássemos cada passo, olhar, toque, palavra no ouvido que, mais do que nunca, sabemos que é dita qualquer bobagem sem o menor sentido senão o de colocarmos a boca no ouvido à espera de que o jogo da luxúria frua como a música que custa a sair do corpo, uma energia flutuante que faz os pés queimarem precisando sair do chão. Uma de suas palavras, contudo, quebrou meu estado de automaticismo, era qualquer coisa como:

- Envelheça comigo - uma mão no meu ombro e outro no meu braço do lado oposto. Pedi que repetisse, não sei se pelo enunciado soar fora de contexto ou se pela vontade de que colocasse a boca perto do pescoço novamente, sei que pedi e ouvi de novo as mesmas palavras. Um pouco de receio tive. Entretanto, controlei o temor e fui extrair o que podia, indaguei: "e como será sua velhice?". Rodeada de pessoas gentis, respondeu, talvez vivendo em uma casa com alguém que amasse, usufruindo daquilo que obtive na vida e nas tentativas de dar a volta em mim mesmo. Foi uma resposta boa, pensei na hora, tomando como inusitado aquele diálogo em meio às mesmices de sempre, as pessoas cantando, dançando e se encarando como cadelas no cio loucas para. Amargura um pouco ver recortes dos passos de lobos encarando seus carneiros que almejam com todas as forças se tornarem lobos por mais que nunca o possam, visto que, uma vez carneiro, sempre carneiro, a vivência de lobo é de algo deveras escura e misteriosa, não a ponto de instigar a descobrir, mas sobretudo naquele sentimento que nos move pela fuga.

Moveu-se pela pista e voltou com uma bebida, o álcool que degrada, instalando-nos mais perto daquilo que chamam de época branca cujo principal hábito será reclamar das músicas altas e sem qualidade dos jovens de hoje, jovens que não fazem nada além de frequentar os mesmos locais, ouvir as mesmas músicas e viver as mesmas sensações, acreditando saber da novidade. Bebeu um gole e perguntou-me outra vez, envelhece comigo? E respondi rápido que nem sei se quero amanhecer com você, quem dirá envelhecer

quem dirá saber de minha vida de depois
como se um baú todo cheia de roupas
onde as traças adoram se meter
formando buracos, armando barracos
sem se esquecer de meus velhos trapos
cujos pedaços em uma era já vesti
e guardo fotos como pequenos recordos
dos bichinhos que em mim já habitaram.

Habitou-me e eu em seu contrário. No meio da madrugada fui-me embora, pensando em que na semana que vem o mesmo lugar teria uma festa boa, e no outro final de semana também; aliás, todo o mês estava perfeito naquele lugar, os donos possuem uma boa visão de negócio...

 *


Vários anos se passaram. Nunca mais apreendi qualquer coisa que me fizesse recordar desta noite, até o dia em que, com meu Amor Maior, trocamos juras de eternidade e prometemos morrer juntos sem nos importarmos com as eventuais quedas de cabelo. A vida é uma sequência de ilusões, refleti.

20 junho 2011

Muita felicidade

Começaremos nossa empresa juntos, jovens e promissores. E eu vou dar pulinhos de felicidade a achar que a vida finalmente entrou no rumo, que aos 24 anos eu sou uma pessoa segura e que trabalho no que gosto. E vamos fazer muitas festas e cultivar nosso grupo de amigos, viajar juntos e perceber que tudo é belo e que maravilha ter toda a vida pela frente.
Somos parecidos nisso, não gostamos de regras nem de médicos. Mas o que pra ti vai ser uma opção, pra mim vai ser uma cruz. A pele vai se modificar, os momentos de dor e fraqueza vão se intensificar, e não vou mais conseguir botar a culpa na umidade ou no excesso de trabalho. Então alguém muito chato me obrigará a ir ao médico e tudo vai ficar claro. Porque a vida não tem nada de maravilhoso, nem de romântico, ela acontece enquanto tu sonha e acaba logo, muito rápido quando se é um grande sonhador. Vai ser tarde, vou me martirizar por nunca ter notado, por nunca ter procurado saber e eles vão dizer que a batalha é difícil, que se tivesse descoberto antes... E eu nunca vou chegar a viver aquela velhice tranqüila e matreira. Vou morrer de câncer tão rápido que só vocês irão se lembrar de mim.

Poeira

Fragmento

Pela lente observo o passo,
                            [O moço passa...]

E o descompasso do moço.
                            [Inerme o tempo]

Retratos do passado.
                            [A todo o momento]


19 junho 2011

O mundo dentro de uma caixa - Parte 01

Depois de insistentes 30 minutos de pedidos, gritos, carinhos e bufadas, dei ouvidos à minha mãe. Saí do sofá e lá fui eu arrumar meu armário/guarda-roupas/guarda-aquelas-coisas-que-não-cabem-na-gaveta.
Quando abri a primeira porta fui surpreendida por um ataque rasante de um objeto voador. Era um playmobil muito a fim de sair de onde estava. Veio com tudo na direção do meu olho, como kamikase com ânsia de não chegar o fim.
Era um playmobil antigo, daqueles que nem mexiam as mãos. Se você já teve um playmobil sabe do que eu to falando. Se não sabe quem eles são, eu preciso te dizer que playmobil são os brinquedos mais incríveis do mundo.
Porque playmobil é um bonquinho gorducho, com cabelo de tupi com franja, que só mexe o braço pra cima ou pra baixo, e as pernas, sentado ou de pé. E mesmo com seus movimentos super limitados, eles conseguiam ser piratas, médicos, pescadores, esportistas, marinheiros, donos de circo, amantes, amigos, irmãos.
Me faziam perder noites à sua espera na chegada do Natal. Me faziam esquecer do tempo descobrindo suas histórias. Me tornavam parte de suas aventuras. A gente ia pra lua, pra floresta, pra esquina da minha casa, pra todos os lugares que eu sempre quis ir e nunca tive companhia.
Bom, isso tudo acontecia pelo menos na minha cabeça de 7 anos, na época em que eles não se atiravam de uma caixa de papelão velha de cima do armário/guarda-roupas/guarda-aquelas-coisas-mais-incríveis-de-nossa-história-que-nos-deixamos-esquecer.

O mundo dentro de uma caixa - Parte 02

Uma semana depois de ter desistido de arrumar meu guarda-roupas para catar o restante dos playmobils, me deparei novamente com um par de portas fechadas à minha espera.
Não era preguiça, não era só falta de tempo. Eu não queria arrumá-lo porque sabia que lá dentro, atrás das roupas que não servem mais, havia uma caixa embalada por um papel brega da década passada, com retalhos de lembranças transcritas em papel de carta.
E ela não estava lá por acaso. Estava atrás da pilha de roupas velhas, no canto onde o campo de visão não alcança, mas o suficientemente perto pra não se tornar esquecida.
De histórias de amor e desgastes de histórias. De todas aquelas coisas que já foram presente e constância. Tentava ignorá-la e todo seu conteúdo.
Na verdade ela havia se tornado intocável, na expectativa que o tempo a empoeirasse, e com a poeira, ofuscasse todos os vestígios ali contidos. Esperava que a poeira que vem com o tempo levasse consigo todas aquelas lembranças.

14 junho 2011

Das mágoas e pedras

Por desejar muito chorar, entrei em conflitos nos últimos dias.

Quando criança, qualquer tristeza era motivo de choro, e qualquer choro limpava a alma. Chorava até cansar, até doer a cabeça, até pesar os olhos, até esgotar todo sentimento ruim. Até esquecer e voltar a sorrir.

Hoje em dia, sinto um acúmulo de decepções, mágoas e frustrações que pesam feito pedras. Recentemente me peguei tentando forçar o choro, numa vontade enorme de expelir a dor, porque era o que acontecia antes. Não consegui.

Com a idade percebi que nossas mágoas são mais profundas e complexas, mas ao mesmo tempo, são mais fáceis de serem encaradas porque nos acostumados – aliás, o grande segredo da vida, o ato de se acostumar. E, quando finalmente consigo chorar, poucas são as lágrimas, e elas já não lavam mais nem fazem esquecer. Não podendo tirar as pedras de mim, carrego-as como história.

Daí, num dia recente, eu me deparei com mais um desses episódios que sucedem as fases boas da vida. Os dias ruins, os dias chuvosos, as vacas magras - como queiram - estavam por vir. Nada mais cotidiano. A grande diferença, desta vez, estava em mim. Foi uma decepção, não menos dolorosa que as outras, mas que aconteceu sem surpresa alguma. Eu já esperava. Ou melhor, aprendi a não esperar muito da vida e das pessoas.

Então aqui estou eu escrevendo, mais uma vez, por uma mágoa sem lágrimas que não passa, só se esconde. E esperando que ela também se solidifique através do fator - outrora o choro - que mais me castiga porque mais demora a reagir, o tempo.

13 junho 2011

pa papa pa pa

"Na hora de bamo já se fumo!"
Ele costumava dizer, alegre, antes de pegar o carro. Às vezes ao levantar da poltrona. A seqüência era invariavelmente a mesma. Sentava no banco do motorista puxando as pernas das calças um pouco para cima. Olhava-se no retrovisor e penteava os cabelos para trás com o pente que carregava sempre no bolso das camisas. Nunca tinha um fio fora do lugar. Botava os óculos, ligava o rádio, aquelas músicas de vô, e nós saíamos. Ele tinha pelo carro um zelo que eu jamais vi em outra pessoa. Não tinha pressa. Dirigia com calma. Sabia que não havia necessidade de correr, onde quer que se tivesse de chegar, ele chegaria. E assim era quando me buscava ou levava em casa. E tantas outras vezes quando me levou ao dentista ou me buscou nas aulas de inglês. Quando me buscava no colégio, quando eu ainda era criança, ele ficava parado ao lado do portão. A chave pendurada na calça. As mãos nos bolsos ou os braços cruzados. De pé. Sempre alto, mais alto. Meu vô foi o único homem com aparência e postura frágeis ao mesmo tempo que fortes. Não sei dizer se ele era forte na fragilidade ou frágil na força. Penso que os dois. Acordava cedo todos os dias, mesmo no inverno. Tratava e soltava as vacas. E no fim do dia as trazia de volta. Cuidava de todo o terreno. Lembro-me dele tamborilando os dedos no braço da poltrona que era a dele. O som do bater dos dedos sobre o couro. O som do esfregar dos dedos uns nos outros enquanto subiam e desciam tamborilando a poltrona. Como se fosse ontem. A pele lisinha e gelada de velho que eu esticava para cima, brincado e querendo que a minha fizesse a mesma coisa. Ele forrava o carrinho de mão com cobertores e passeava comigo nele no pátio. Ficava ao lado quando eu andava na Sucata, a égua preta que foi a única por lá. Ele cochilava vendo as novelas do fim da tarde. E a poltrona hoje mudou de lugar. Mas é como se ele ainda estivesse lá. Como se eu fosse passar pela cozinha, entrar na sala e vê-lo lá, tamborilando os dedos. Quando pega na minha mão enquanto eu durmo e me diz pra não chorar. É como se ele ainda estivesse lá, esperando a gente chegar pro churrasco domingo. Tamborilando os dedos na poltrona.

12 junho 2011

A guerra.

Ouvidos atentos a eminência de passos.
Qualquer ruído seria esclarecedor. Prova de choque.
Olhei para o relógio. Apontava perigo.
Olhei para os dois lados em busca de inimigos. Mesmo aqueles que se pareciam fora de rota. Muito suspeitos.
Se demonstrassem interesse, sairia correndo. Não era fuga, era vitória.
As armas: sabonete e toalha.

Tomar banho às 22h numa casa de estudantes não é fácil.

"Vem cá, bom menino!"

O que eu vou dizer agora pode parecer meio agressivo. Mas eu não gosto de gatos.
Não que eu os odeie. Simplesmente não sou fã. Tanto é que eu reconheço suas qualidades.
São bichinhos peludinhos, que geralmente cabem no colo.
São manhosos, tomam leite, são levinhos.
São quentinhos e limpinhos que se enrolam nas cobertas.
E ainda brincam com lã na maior delicadeza.

Mas ontem vi minha irmã chorando porque o gato dela fugiu. Me contou angustiada que essa era a terceira vez que ele fazia isso. Limpando as lágrimas com as mãos trêmulas ela ainda falou que não saberia o que fazer se acontecesse alguma coisa com seu amiguinho peludo.
--
Nossa conversa aconteceu um pouco depois de eu ter chegado em casa e, como de costume, ter sido recebida por um rabinho abanando e a língua de fora do meu vira-lata chamado Scot.

Chocolate ou cerveja?

Bom, eu não sei, mas sempre depois de uma boa conversa as coisas tendem a render.

Fiquei pensando, se fosse pra dizer, chocolate ou cerveja?
Chocolate tu come.
Cerveja tu bebe.
Chocolate dá espinha.
Cerveja dá barriga.
Chocolate pra lembrar.
Cerveja pra esquecer.
Chocolate é Tpm.
Cerveja é qualquer coisa.
Chocolate de qualquer jeito.
Cerveja só gelada.
Chocolate dor de barriga.
Cerveja dor de cabeça.
Chocolate dá peso.
Cerveja consciência pesada.
Chocolate preferido.
Cerveja em promoção.
Chocolate no frio.
Cerveja no verão.
Chocolate é desculpa.
Cerveja, desculpa.
Chocolate.
Cerveja.
Cerveja e chocolate.

31 maio 2011

15 gatos e uma cozinha grande

- Se ganhar na loteria, te dou um apartamento.
- Mas o que te faz pensar que eu quero sair de onde moro?
- Não sei, tu vive a reclamar do teu irmão e das bagunças dele, achei que quisesse.
- É, isso me atrapalha. Mas fora isso, não é tão ruim assim. Sairia daqui apenas pra morar em uma casa com 15 gatos.
- Então, se eu ganhar na loteria, te dou uma casa com um gatil nos fundos. E uma cozinha grande, e uma sala de TV com acústica de cinema. E um ofurô.
- Mas porquê tudo isso?
- Quero que nossos amigos venham jantar na cozinha grande. Depois assistimos a filmes bons, bebendo vinho, e rindo na cara da vida.
- Como assim? Decidiu agora que vai morar comigo? Rindo na cara da vida, onde tu aprendeu essa expressão?
- No mesmo lugar onde tu aprendeu a ser a chata que questiona tudo.

Aquela dúzia de vacas

Meses sem se falar, anos sem se ver pessoalmente. Em tom de piada, ela envia a ele o link de um site que descrevia uma promoção cruel:
Visite todas as vacas da Cow Parade em PortoAlegre, fotografe, e envie para nós. Presentearemos todos que completarem essa tarefa com uma cesta de produtos da nossa linha de laticínios.
Era uma piada, ela enviou porque achou absurdo que alguém se daria ao trabalho de dar voltas pela cidade, durante dias, fotografando vacas. Ele tomou como um convite.
Como ela não sabia dizer não a ele, e sentia saudades da época que eram próximos, aceitou. Andaram durante toda tarde pela cidade, fotografaram muitas vacas da zona norte e do centro de Porto Alegre. Conversaram sobre todos os assuntos que ainda pudessem ter.
Antes que marcassem uma segunda tarde de perseguição às vacas, a promoção foi cancelada. De toda forma, não ganhariam o prêmio.









Ela apagava as fotos, com esperança de que o passeio durasse para sempre.

Hersheys.

Ao leite, crocante, ovomaltine.
De que adianta?
Com nozes, avelã ou passas.
Pra quê?
Branco, napolitano, amargo.
Amargo.
O único sabor que conheço.

Natália Penelas

Café da manhã

Depois de alguma discussão, decidiram que filme assistir.  Três horas depois da conversa, meia hora atrasado, ele aparece para busca-la, dizendo que a reunião se estendeu mais do que o esperado. Ela não se importou, entrou no carro e beijou o rosto dele como sempre fazia.
Chegaram correndo ao shopping, com medo de perder a sessão. Por sorte, quando entraram na sala, recém iniciava as propagandas antes do filme. Ele correu ao bar do cinema e voltou com seu refrigerante e uma barrinha de chocolate Suflair para ela. Ela desejou durante todo o filme que ele a abraçasse, segurasse sua mão, encostasse a cabeça em seu ombro, mas nada aconteceu.
O filme era ótimo, aquele último do Almodóvar que os amigos tanto comentavam, e eles saíram discutindo animadamente da sala do cinema.
A caminho da casa dela - a carona de volta, ele avisa que precisaria passar antes em sua empresa, porque havia esquecido umas compras por lá. Subiram juntos, ele queria que ela conhecesse onde trabalhava. Ela não sabia como se portar, se era certo ou não elogiar, mas mesmo não sabendo, deixou claro que havia gostado de conhecer o lugar. Ela não esperava mais por nenhum tipo de intimidade, apesar de secretamente desejar. Haviam decidido ser só amigos. Na verdade, ele havia decidido e ela acatou.
Depois de conhecer tudo, ele busca sacolas de supermercado na cozinha da sala comercial, e comenta:
 - Comprei isso para o teu café da manhã.

26 maio 2011

Chocolicias e Palavras




Palavra: Vicio
Vicio: Chocolate




@marceloinverso
Ferramenta: http://www.wordle.net

22 maio 2011

Tudo é tão feroz e doentio

Ninguém sabe o que é ter câncer.

Você não pode deter a iminente tomada de pânico após ouvir o diagnóstico. A morte é algo que provém do irracional, então todas as palavras que com ela caminham trazem a nós a perda de controle, além da incerteza sobre nossa real relevância neste mundo. Foi absolutamente detestável a aparente comoção do médico, escondendo um enraizado desleixo, ao mostrar-me os exames. Crescimento de células jovens, é preciso de um tratamento imediato, comunique a sua família, por favor, você precisará de apoio, não será fácil a partir de agora, é uma doença que costuma acometer os novos tanto mais quanto os velhos. Como foi detestável a sua autoridade medicinal, asséptica; de bigode branco me encarando jovem; quantas mortes ele já testemunhou? e deve estar matutando se durarei ou não, como hei de ser sem meus cabelos, se capaz de extrair um profundo sentido com a aproximação da Bela.

Mesas de vidro sempre me deixam deveras nervoso, toda a exposição das pernas em uma sedução fantástica, a maneira de cruzá-las e colocar a postura, o modo de apresentar-se perante um desconhecido, encaixando braços, as mãos juntas ou uma em cada perna. Ao saber-me com câncer, detestei ainda mais a minha desnudação para um velho de bigode branco. Ele se tem com o poder, visto que é quem conhece do meu corpo sem nunca o ter visto, sabe da minha postura porque conhece centenas de outras que já passaram por sua sala do nono andar e, mais do que tudo, sabe do meu fim porque sabe da minha vida. Meu corpo me trai e me mostra a um qualquer, ele é um qualquer, doutor asséptico e prepotente, com bigode e avental brancos, a mesa envidrada e a estante de madeira de reflorestamento cheia de livros médicos e do Moacyr Scliar, provavelmente alguém em quem se espelhou enquanto estudante. Naquele consultório em uma tarde chuvosa de maio eu pude ter nojo do mundo, porém muito mais do doutor à minha frente: na cadeira dura eu fazia o papel de um doente terminal. Só isso que eu era, todo o resto atirado às favas; jovem, universitário, tenho pai e mãe e um irmão do qual nunca fui amigo... eu cheio de amigos que me confortam e me agregam, sentindo o nexo da vida a partir dos meus sentidos que me passam a perna, coitados e infiéis, me traindo e me matando com a multiplicação de células blásticas que pouco a pouco vão me tomando a medula óssea, matando e matando e matando; a partir de agora a morte no cangote.

Vontade de sair dali e me atirar no chão da sala e chorar até ficar em uma pose miserável, uma mão sustentando o corpo e a outra apertando o peito, o pranto tão grande que o choro mal sai, a boca só abre e resta o silêncio da passividade em relação a tudo o que abraça, cachorros que me lambem e fazem ruídos que lembram miados e eu juro que tudo o que queria era voltar ao momento em que abria uma barrinha de chocolate antes de entrar no consultório branco, asséptico, alegre ao degustar a gordura e o cacau na embalagem colorida da vaquinha que dá leite, tudo é tão sagaz e doentio, efêmera a minha fala que, não posso postergar, tenho certeza de que não ficará, minha existência fadada à memória dos outros. Nunca gostei de depender de alguém além de mim mesmo e agora é comigo que não posso contar. Será que o cobrador do ônibus que pego dará falta por mim quando eu morrer? Talvez devesse dar um presente para que se rememore, é egoísta, sim, mas o que é a natureza, não exijo que se lembre de minha pessoa, meus traços e maneira com que punha a cabeça na janela, só que rememore daqui a um, cinco anos, que um jovem desconhecido um dia deu-me uma barra de chocolate e foi tão educado, como há pessoas boas no mundo. Que ele ainda mantenha esperança no mundo porque a minha vai fadar e fadar com a existência.

Acho que não duro muito, o tom de voz usado pelo doutor não me deu muita esperança. Espero pelo menos que isso não seja fruto de uma personalidade doentia que se agrada em testar maneiras com que desconhecidos recepcionam a morte, talvez ele tenha um caderninho com nomes daqueles que sobreviveram, quem há de saber? Tantas vezes que disse a a palavra câncer mas nunca soube efetivamente o que é, jamais experimentou a degradação da carne e do ser, a angústia da espera, da certeza de algo que chegará mas não se sabe quando. Quando pequeno, impacientavam-me muito os dias anteriores à viagem de férias, qual a praia a ser escolhida, a ansiedade em fazer a mala e escolher o que levar para o outro lugar. Hoje, mais velho e com mais paciência, fico outra vez à espera da viagem sem saber o que colocar na mala. Angústia que raiva e dilacera, como eu queria voltar a degustar o chocolate da mesma maneira com que degustava dias atrás...

19 maio 2011

o prédio mais alto

Fico pensando na aproximação. Se a gente chegasse mais perto. Encostasse as mãos e falasse do que não fosse programado - do que não fosse esperado que nós falássemos. Ele é alto, vê as pessoas de cima. Como será? Não será como subir no terraço do prédio mais alto. Mas a distância - a mesma? Entre nós. É programado. Nossas palavras, os sons que nós emitimos chegando aos ouvidos do outro, os lábios abrindo e fechando, as línguas mexendo-se na boca, os olhos passeando como sentissem medo de se encontrar e ali permanecer, os movimentos calculados que dão certo pra ele e errado pra mim. Mas é programado. O coração batendo rápido era mentira, imaginação. E acreditar na imaginação torna-se a verdade imaginária. Também são verdades. Mas o coração batendo era mentira. Visto por uma fresta, entre as portas e as janelas. E a pele morena e as roupas pretas. Passeando de longe logo ali. Eu fico pensando nos encontros. Se a gente criasse uma relação diferente, em que o que nós somos programados para fazer não existisse. Se a gente dissesse. E ouvisse o mesmo som de uma noite. Se a gente tocasse. E sentisse a mesma textura que emana das vozes graves suaves. Não saímos da linha por um instante. E se saímos - eu não sei. Como seria? Prazer. Como chocolate.

17 maio 2011

As coisas que eu mais amo na vida!

As coisas que eu mais amo na vida são café e chocolate. Poderia dizer que é a cafeína, por ser o mínimo múltiplo comum entre eles, mas não me parece tão poético.

Claro que meus prazeres não acabam aí. Vivo uma ânsia diária insassiável por conhecimento, que me consome a cada nova descoberta, nunca cessa, nunca me satisfaço.

‘’Sem fastio, com fome de tudo’’. Tendências consumistas? O que for, são os três ‘’cês’’ como alimento de organismo e de alma. Meus três vícios.

Pensando nisso, descobri que meus dias têm sido à procura dos meus pequenos prazeres enquanto deles me alimento. O café e o chocolate, comprovadamente estimulantes, tiram o meu sono, eu anseio conteúdo, logo, vou atrás de novidades sobre música/cinema/pessoas/livros/festas/moda/qualquer coisa que me interesse, regado a mais café e (quem dera, antes fosse) mais chocolate.

Os três, diariamente, num círculo vicioso, numa rotina incansável.O que soa irônico, para quem odeia rotinas, essa é a única que consigo manter, a única que eu suporto, e é aí que se encontra a mais sublime designação de amor.

A conclusão dentre tantos cafés, chocolates e conhecimento – ou a busca por (isso que eu nem citei os chás) é a de que pareço uma louca velha mal-comida e que nesta vida me falta um Cadu.

do meu direito de ouvir

Ela ficava lá falando. Nunca vi ninguém com tanta coisa pra dizer. E enquanto falava balançava a pele pendente abaixo do queixo. Os cabelos de aspecto velho, gasto, o nariz redondo vermelho, as roupas estranhas - nada incomodava mais no quadro daquela mulher do que ouvi-la falando. As frases sempre no mesmo tom, discorrendo sobre acertos e erros, repetindo tudo outra vez de novo. E as piadas nem eram engraçadas. Será que ela não se dava conta? Será que ninguém se dava conta? Ah, meu Deus. Era muito chato. Ficar ouvindo. E ela falando. A cara de eu já sei tudo. Ouvir é coisa boa. Ouvir é coisa boa por excelência. E naqueles casos. Tornava-se extenuantemente maçante. Era injusto que ela estragasse. Aquela mulher que parecia ter nascido para infortunar.
Uma bola de pêlos. Enfiei uma bola de pêlos na boca dela. E ela se calou. E eu pude voltar a ouvir.

16 maio 2011

Charlie

Imagina um gato sapeca. Amarelo, vira-lata, adora correr pela casa, quebra vasos, come plantas, morde sapatos, coisas de gato louco.

Pensa também em um gato carinhoso. Branco, pelo longo e macio de angorá, te segue pela casa, pede cafuné e dorme enrolado nos pés da cama.

Agora imagina esses dois gatos em um só. Adiciona a ele uma adorável patinha com curativo.

Esse é o Charlie.

pretinho

eu saio de casa as 7 e 15 e ele tá lá, com seu pêlo mudando de preto pra uma cor de cabelocompridoqueimadodosol
eu chego em casa as 10 da noite e ele vem correndo de longe, com aquele passinho manco, e lambe a minha mão como se tivesse gosto de açucar
eu me preocupo se ele vai ter comida amanhã
eu ficou extremamnete feliz quando vejo outra mão sendo lambida
eu gosto muito quando um potinho d'água pousa na frente de um portão
ele, se fosse gente, seria daquelas pessoas que se dá bem com todo mundo
ele corre atrás das motos que passam na rua
nos dias de chuva prefiro não vê-lo, assim penso que ele tá abrigado e sequinho
ele usou uma roupa que era bem menor que ele, vermelha
ele rola na areia com outro que precisa tanto de carinho como ele
ele chora quando tem um amigo indo pra lá e eu indo pra cá, chora pela escolha que tem que fazer
ele me acompanha até a parada
ele tenta entrar no meu quintal
agradeço porque tem gente que gosta dele tanto como eu
ele já não aparece mais todo o dia como antes
agora, quando me vê, ele vira a cabeça pra ver quem sou eu
ele tá ficando um adulto que tem que se virar
agora sou eu que quase choro quando ele não lambe a minha mão
aquele cachorro me despertou um sentimento tão bom
eu agora é quem fico triste porque vou sozinha pra parada
aquele pretinho

Furby

     Suas orelhinhas pontudas estariam dispostas a me ouvir sempre que necessário. Aqueles olhos, redondos e brilhantes, duas bolinhas de gude, me fitavam de forma tão vívida que pareciam entender as angústias de uma menininha de 7 anos. Ele não só me ouvia e entendia, como falava. Eu poderia ouvi-lo e seguir seus conselhos. O seu corpinho era redondo, peludo e tão pequeno, mas eu sabia que havia grandeza em seu interior. Grandeza difícil de encontrar em muita gente por aí. Naquele momento eu soube que nos daríamos muito bem - e ele seria meu melhor amigo.
     Mas havia uma vitrine nos separando e a mão da minha mãe me levando para longe daquela loja de brinquedos, porque "imagina comprar um bichinho daqueles, ele é tão feinho, tu quer mesmo ter esse Furby no teu quarto?" Não adiantava tentar convencê-la: eu sabia que nunca o teria comigo. O que restou foi torcer para que alguma outra menina o levasse para casa e fosse sua melhor amiga. Assim como eu teria sido.

14 maio 2011

Oh, mundo cruel./Meow, é isso aí.

Olhos azuis e olhos verdes.
Pêlos brancos e pêlos pretos. Curtos e longos.
Patas sujas de lama e sangue de preás.
Rabos cheios dos famosos pega-pega e também de carrapichos.
Miados agudos que não irritam nem um pouco.
Línguas ásperas que pedem comida e dão carinho.
Garras que não têm ciência de sua agudeza.
Ronrons tão fortes quanto o motor de um caminhão.
Peitos subindo e descendo lentamente enquanto eles dormem na minha cama.

Quatro pequenos anjos que surgiram na minha vida.
Graças a pivetes sem coração.

Natália Penelas

10 maio 2011

Vani, a heroína da noite que não sabia voar


A bola de pêlos...
Que vai e que rola
Dançando pelo corpo suado
Que desce e se embola
Neste abraço todo farto e caricato.
Vani, a heroína designada para ser
E crer na bondade alheia e citadina...

A cidade é deveras perdida.
O prédio lhe parece demasiado cinza
Mesmo com as janelas baixinhas,
Comparadas aos sonhos de menina
Que desce e que chora
Olhando para a lua
Nem diálogos e nem rezas bravas,
Só o brilho que agua
Agua a alma e escalpa sua vontade
A vontade de mexer na sociedade.
Triste saber de tudo isso:
Do riso que entorta, da amargura já incrustada
Na casca de maçã morta.

Tudo não passa da paz dos descontentes...
O intimismo, a resignação,
A lua que amorfa, como se com ela se estende
À ira dos sexos
Dos nexos
Nexos causais e modais
Você precisa empregá-los bem
Dizer que quer voar e flanar pela noite
E espalhar a loucura no céu.

Como uma mosquinha tonta, que bate na janela
A heroína voa
Ao chão.

07 maio 2011

Nos fundos da casa, espontâneamente, ao fim da tarde...

A bola de pelos, mimi, lambia o bola de pelos, lélé.


Fin.

04 maio 2011

era um[a] casa[l] muito engraçad@:

uma pequena odisséia doméstica em 3 atos

Ato 1 - I wanna live alone

Acho melhor eu ficar aqui e você sair.

Sim, eu quero morar sozinha, vai ser melhor para você e para mim, se ver todo dia é foda, não sei como lidar com isso, só sei que não quero a vida dos meus pais e nem a dos meus avós. Eu quero morar sozinha e ir te visitar nos finais de semana! Já pensou que legal? Eu te convido para jantar aqui, tu me convidas para ir assistir um filme aí, ia ser massa, a gente ia curtir muito, nosso namoro ia durar pra sempre. Não sei se para sempre, mas por um tempo, com certeza mais tempo do que se a gente continuar nessa casa junto. E depois, eu vou mesmo comprar aqueles tapetes e cortininhas de cerejinha, eu sei que tu não gostas deles, que tu achas muito brega. Eu quero morar sozinha e fazer as coisas do meu jeito.

Ato 2you could have it so much better

Obrigada por depositar o valor do aluguel na minha conta, mas porra, você levou até a tampinha que encaixava no ralo do tanque. Precisava fazer isso? Espero sinceramente que não sirva na sua nova pia ou sei lá o que.

Ato 3come on home / can´t stop feeling

Hoje abri a porta do quartinho da bagunça, na verdade, nem dá mais pra chamar assim, tá tão arrumado, porque não tem mais quase nada nele. A bicicleta, os patins, os engradados de cerveja, tudo foi embora. Que vazio. Faz até eco. A cama tá arrumada, porque eu durmo agora no sofá-cama assistindo TV de madrugada até minha cabeça sair fora do ar, com sorte não derrubo mais uma garrafa de vinho e mancho outro cobertor. A cama. Que vazia. Faz até eco.

Alessandra Boos

03 maio 2011

Conversas de bar

Uma casa com janelas e portas abertas, grandes, quadradas. As madeiras antigas das janelas são tingidas de azul. A casa, aconchegante, templo de histórias de família, tem arquitetura antiga, mas ainda assim mantém-se com ares contemporâneos.
Há hera em algumas de suas paredes brancas, escondendo as rachaduras como rastros do passado, mas não a deixando menos bonita. Do contrário, a minha curiosidade aumenta a cada nova fresta encontrada.
Não há grades, nem muros. O quintal é grande, e abrangeria muitas pessoas. Cheio de árvores e densas sombras por elas produzidas, possui um frescor de primavera.
Uma casa bela, que te convida a entrar, mesmo não sabendo muito bem a quem pertence e que história guarda.

E aqui, do outro lado da rua, a outra casa escura e cerrada a comtemplá-la.

01 maio 2011

Maio

Não sei se é este vento na janela
Ou a janela com o vento e a noite
Ou se é maio e o vento na janela da noite...
Mas me faz muita falta o espaço de minha casa
E a família e meu cheiro nas cobertas

O ser vazio ocupa muito de nosso corpo
Nosso corpo é algo que ocupa grande parte do mundo
Ausência é um estado muito mesquinho a instalar
Porque derruba paredes sem erguê-las de novo
E você fica sozinho a ver estrelas no céu
Só contando a hora de acordar

Faz frio em maio e não há qualquer parede
Ou algum limite para demarcar-me em mim...

Ninguém sabe o que é largar o futuro
Nas mãos de uma cousa toda louca e animalesca
Como se viesse e fosse embora
Muito antes de se despedir

Muitos sabem o que é não ter teto
E morrer no frio
Ninguém sabe o que é não ter paredes
E falar e falar e falar...

Ausência é gritar e não ter paredes para ressoar.

30 abril 2011

Minhas sinceras desculpas.

Um desabafo daqueles
que só ficam na mesa de bar.

Ta, eu vou falar a verdade. Te conheci foi por acaso. Na primeira vez que te vi nem te dei bola. Tu tava lá, como sempre esteve, mas sério, não fazia diferença nenhuma na minha vida. Talvez tivesse lá seu valor, mas era sempre figurante de uma ou outra vez passando de passagem. Nunca te quis. É sério.
Mas aí tu resolveu que ia ser mais pra mim. Que ia ficar presente, mesmo sem eu querer ou esperar. Porque afinal, em todas as coisas que eu queria fazer, tu de alguma forma tava lá. Tu acha que não te saquei? Ta, ta. Na verdade no começo não, confesso. Mas depois...
Primeiro chegou como quem não quer nada. Tava ali, só me cuidando. Naquela época, eu ingênua nem reconheci. Desculpa, mas tu não passava de uma desculpinha de férias de inverno. Te via quando ia lá no Iguatemi com o T7 jogar fliperama com meu irmão, muitas vezes no feriado da páscoa. Geralmente minha tia esquecia que sexta-feira-santa-não-se-come-carne e fazia suas pizzas maravilhosas de calabresa. Desculpa mesmo, mas entre uma pizza-maravilhosa-de-calabresa-depois-de-muito-street-fighter-no-fliperama tu não era nada.
Mas depois, né, acho que tu sentiu minha falta. Ou acho que era inevitável que nossa relação começasse a ter um valor a mais. Quer dizer, ter um valor, alguma ligação além de pizzas-de-calabresa e T7s na páscoa. E aí você fez questão de aparecer mesmo, sem delongas. Só de pensar em você me dava calafrios. Medo mesmo. É, confesso, tu me dava medo. Medo e ansiedade. Uma incerteza cretina. Começou aparecendo de vez enquando durante a noite e depois se tornou pensamento constante até o maldito vestibular. E desculpa te falar, mas de novo tu não era a ocasião primeira. Você era pretesto. Tava ali porque tava, não porque eu quis que você tivesse. Mas você não desistiu. Não. Tu foi lá e conseguiu o que queria. Ganhou minha atenção. E quando vi meu nome no listão você se tornou certeza. A minha certeza. Pelo penos a certeza da presença constante.
Tu sabia que eu tive que largar tudo por causa de ti? Tu, toda cheia de si e continuou como se não fosse nada.
Me jogou seu encanto, me mostrou coisas lindas. E bah! tanta coisa que a gente pode fazer juntas, e sempre com a absoluta certeza de quem pode mais. Férias-de-inverno o ano inteiro.
Simplesmente não consegui resistir. Me ganhou. Ganhou de verdade. Prestei atenção em ti. Te saquei. E o que mais me irrita, é que hoje é impossível não gostar de ti. Veio como quem não quer nada e hoje faz parte de tudo que faço. Sempre ali, aqui. Sempre. Faz eu acordar às cinco e meia da madrugada só pra ir te ver. Faz eu pegar um trem lotado de gente com cara de sono só pra ficar contigo. Só pra ser do teu jeito.
Depois da indiferença, do medo, ansiedade, paixão, hoje você ainda me divide. Faz eu ter que optar por Pop Cult ou Laika. Por comida congelada ou arroz-com-carne-e-maionesa-da-mamãe. Por amigos de infância ou colegas fabicanos. Inevitavelmente. Consciente da tua importância.
E o mais foda de tudo isso, é que eu deixo. Tu me ganhou, te falei. Ganhou mesmo. Hoje faço as coisas pra ti e tu ta incluída nos meus planos futuros.
Porto Alegre, me desculpa, mas agora mesmo tu não querendo, sou eu que não vou mais te deixar.

29 abril 2011

[casa]

Está-se. Um lugar. Fechado, protegido, resguardado dos males do mundo exterior. Os males? Não há intervenção. Incomodação. Apenas se está. Deitado. Lendo. Um filme. Escrevendo. O telhado. Olhando pela janela. O pátio. O imaginário, as memórias, o passado, a presença de tudo solta no ar: em qualquer lugar, a qualquer hora. O melhor lugar para dormir e o lugar onde se tem insônia. É um lar. Mas já não é mais. Ainda é? E a vida. Mas a vida já não está mais lá. Ainda está? Uma casa é um paradoxo. No ar. Tudo no ar. Saudade. Saudade? Muita. Não. Sim. Tudo. Junto.
Lar. Doce lar. Doce? Lar?
Lar, doce lar.

26 abril 2011

Porto Alegre, 21 de abril de 2011, Mundo

Linha T1 Direta, sentido Sul/Norte.

Louco, preto, fedorento e esfarrapado, entra no ônibus e passa por baixo da roleta.

Cobrador, funcionário, branco, uniformizado, tenta impedir com gritos e pontapés.

Ônibus para.

Motorista, macho, branco, cabelo penteado, agarra o louco fedido pelo braço e força sua saída.

Todos calados.

Menos o louco e o motorista.

E a senhora, que se levanta dizendo que tal atitude era desumana.

E o cobrador, respondendo que desumanos são os passageiros que ligam para as empresas de ônibus reclamando que pessoas mal cheirosas têm entrada livre e gratuita nos coletivos da cidade. Que desumano era como o chefe dele dava esporro após as ligações. Que desumano é o sistema que os obriga a viver aquela situação. Sistema que criou o louco, que criou o chefe, que criou a obrigação.

Todos calados.

Menos o louco.

25 abril 2011

Minhas casas

Quando conheço alguém, aquele alguém que fico no mínimo 3hs conversando, é certo que, em algum momento, vou imaginar o interior do lugar em que a pessoa vive. Não sei desde quando tenho isso, mas já faz parte de mim.

Para uma pessoa muito alegre, viva, imaginei uma casa de dois andares, bem arejada e cheia de barulho: música, pessoas conversando, bichos de estimação de um lado para o outro.

Para outra, metódica e rotineira, imaginei as paredes brancas, o piso feito de lage (também branca), e todas as coisas em seus devidos lugares: livros em uma estante organizada, sofás milimetricamente alinhados.

Para uma terceira pessoa, que era expansiva e gostava de chamar a atenção, imaginei apenas seu quarto: um cômodo grande, com escrivaninha e armário, e paredes de cores diferentes do branco. Uma cama de casal até.

Há ainda aqueles que eu não consigo ter certeza de como seriam suas casas, pela complexidade de cada um.

O engraçado é que a imaginação e a realidade coincidiram uma ou duas vezes. Nas outras, achava tão estranho que a verdadeira casa não fosse a que eu tinha imaginado, porque...era tão dela! Aquele era o lugar perfeito para aquela pessoa, como se ela merecesse aquilo.

Hoje, acho que o que eu vejo é a casa que cada um é. Acolhedora ou organizada ou clara ou escura ou quieta ou barulhenta. Ou nada disso. As casas surgem daquilo que cada um me transmite.

Daí fico me perguntando: que casa os outros vêem em mim?

Um portinho alegre

Depois de dias, ou meses, em alto-mar, aquela era a primeira visão que tinham da nova vida: um portinho simples, feito de madeira, que ia ao largo de uma parte da costa. Com seus barquinhos de papel e seus barcões de metal, e as tralhas e parafernalhas típicas desse lugar. O que mais chamava a atenção eram as pessoas. Andavam de um lado para o outro, uns descarregando, outros carregando, muitos na feira (era uma linda manhã de sol). Cada um sendo único, mas todos com o mesmo sorriso alegre, como se da mesma família.

Um lugar acolhedor.

20 abril 2011

Minha Casa

Fora, as pessoas se perguntam: "— Aqueles vultos que vemos, são os móveis da casa?" Não acreditam na idéia de haver uma casa onde não haja móveis. Com suposições confusas, definem que os vultos que vêem, é todo o tipo de móvel que uma casa deve ter. No cantinho é o sofá, mais ao fundo é a cadeira. "­— Ah que graça de quadro!" Eles falam. Belo espelho, e tapetinho simpático. Outros gostam bastante dos azulejos ganhos em alguma festividade cristã. Lá dentro guarda seu guarda-roupa e sua sapateira. Também, sua mesa e sua cama. Tudo que é visto de fora não passa de vulto. Formas que parecem outras formas. As pessoas não conseguem ver não-formas. Elas têm e precisam ver formas. Definidas. Nítidas. Não surpreende saber que esse ar de mistério é explicado de maneira tão banal. Ao invés de irem atrás do que se esconde atrás das cortinas, elas se contentam em iludir-se criando falsas respostas, julgamentos precipitados.

É difícil organizar a minha casa. Os bilhetinhos de anotação estão espalhados por todos os cantos. As louças sim ficam guardadas. Afinal de contas essas ferramentas são muito uteis no dia-a-dia. Assim como a escova de dente. Manter o sorriso falso é cansativo, mas tem que estar em bom estado para funcionar. Afora isso, todo o resto é desorganizado. A parte divertida é que só eu entendo essa desorganização. Antes não passava de suposição, mas se até hoje ninguém conseguiu compreender como funciona a organização da minha casa, sem eu ter que ficar constantemente explicando, logo, tenho a certeza que essa desorganização só eu entendo. Após entrarem, e aprenderem como a organizo, é que as pessoas confortam-se como se estivessem no seu próprio lar.

Aquele breu aparente do lado de fora é triste. Elas desconhecem as paredes coloridas da minha casa. Por exemplo, no meu quarto as paredes são verdes. Verde cor de praia limpa. A sala tem as paredes bege claro e roxo. O branco não é bom porque o inquilino já é meio branco, daí ofusca os olhos e os corações. O banheiro tem uma cor que agora eu não consigo lembrar o nome. O importante que ela é sim, colorida. Gosto de saber que as pessoas de fora não captam essas tonalidades, só os que entram na minha casa. Descobrem de forma muito surpreendente que tem cores muito bonitas dentro. Diferente do que se achava. Mas nunca digo a história destas paredes. Cores, essas, que foram pintadas com o suor, sangue e lágrimas de minha vida toda.

Apenas por esse singelo motivo que, para os passantes e os velocistas, é impossível que na minha casa haja móveis e tampouco aquelas paredes colorê. Não é difícil acreditar que mesmo vizinhos próximos achem minha casa feia. Não... De forma alguma eu culpo os lixeiros, nem os carteiros. Nem os entregadores de gás ou as gatas e ratos e raposas, crianças e velhos ou serviçais. Jamais. Para eles minha casa sempre será feia. Não tenho motivos para me importar com essas opiniões. Meus amigos todos já entraram na minha casa simpática e singela. Eu sei que em suas mentes e seus corações, minha casinha sempre será aconchegante, e muito bonita. Até as cores e móveis, mesmo sendo estranhos e incongruentes, tendo uma beleza exótica, são um dos lugares do mundo em que eles gostam de estar. Isso me ruboriza e fascina.

Onde se encontra a minha casinha? Não que seja fácil encontrar, mas se quiserem saber eu digo. Na avenida do espaço, na rua do universo, condomínio liberdade, apartamento 812, caixa postal atemporal. Ela existe em um lugar de difícil acesso, que nunca é lembrado. Onde não tem crianças brincando ainda, mas um dia terá. E um dia também será tombada pela inevitável entropia. Diz ela, que tudo se quebra para ser construído novamente de forma mais forte (resistente).

Podem até não gostar, mas os inquilinos gostam. O tempo todo eles fazem festa. E sempre me incomodando. Só dão trabalho esses bobos. Apesar de que, algumas vezes, já vi um deles bem triste ouvindo Bon Jovi outro dia. Ainda assim, a parte que mais intriga é que moro sozinho. Afinal, quem, além da minha alma e dos meus sentimentos, conseguiria conviver comigo?

Minha casa é meu abrigo. Meu castelo, meu domínio. É a fronteira do infinito. Impõe-se no tempo presente. Num lugar que é bonito, até o vento, me é contente. 

Minha casa é minha vida. Minha mente.


16 abril 2011

Carrego Porto Alegre em mim

E espera repousar
E no fundo que eu diga sim
Porém não vou dizer assim
Queria mas não posso falar
Mais por não ter um certo lar
Mas ninguém tem efetivamente um lar...
Só o mesmo céu e as estrelas
E como eu queria que Porto Alegre em mim crescesse
E como eu queria que eu crescesse...
No fundo só um menino desejando brincar
E dançar nas ruas da pequena Capital
Tudo teatral e melodrama
Todos choram. Todos amorosos e simpáticos
Como se Deusinho desatasse o bom-humor
E como gosto de pessoas e sua dor
Às vezes dá vontade do abraço
Só pra carregar a Porto Alegre no meu peito
Tristeza é longe e a razão parece mais
Hoje não represento mais o "eu". Hoje sou todos
Sou a Capital e todas as suas luzes
A piada boba, o namoro na TV
O casal no parque, a velha chorando no cinema
Hoje sou ninguém
Posto isso sou todos
Só posso escrever pra desinchar
E verter de mim as pessoas que me fazem
E como eu queria que as pessoas desfizessem
O mal que as atormenta até o final
No fundo só esperam que eu diga o sim
E eu queria dizer sim...
Queria mas não tenho um certo lar...

porto-alegrense

Moro numa casa sem janelas.
Morto numa casa sem janelas.
Janelas numa casa de mortos.
Moro numa casa de mortos.
Com janelas.
Até aqui a gente já se perdeu.
Trocaram os caminhos.
Cidades duas.
Duas cidades.
Você não é o mesmo. Morreu ao longo do caminho.
"É como aquela música dos Titãs, eu sou de lugar nenhum."
Bem-vindo à casa.

14 abril 2011

vou-me embora

vou-me embora desta casa.
te enrolei por muito tempo.
me menti por mais ainda.
aqui não sou de verdade.
não assumo opinião.
não alimento as vontades.
vivo a esfregar teu chão.
vou-me embora deste vício.
sem moral e compaixão.
fiz de tudo que é errado.
me tornei um belo cagão.
vou-me embora pra me achar.
e não me perder jamais.
vou-me embora pra Porto Alegre.
e lá pretendo ter paz.

outono

acorda
esfria
chove
chora
molha
empoça
enlameia
venta
seca
descabela
rebela
reinventa
levanta
encanta
dança
ilumina
esquenta
ameniza
alivia
suspira
sorri
e sonha
antes de dormir.


(Meu coração é Porto Alegre)

12 abril 2011

Despretencioso

[Contextualizando:

- Isso foi criado (mesmo!) dentro de um ônibus. Inspirado em momentos antes, ainda na parada de ônibus. Numa sexta-feira chuviscosa. Pouco após meio-dia. A parada fica perto de uma escola, e algumas crianças ainda estavam ali, tomando chuvisco na mente, à toa. Afinal, era sexta-feira. E eis...que no meio da parada...Um senhor, muito parecido com aqueles peruanos que aparecem no meio do centro da cidade para apresentar as músicas de sua cultura. Mas, esse homem tinha estilo. Cabelo rabo-de-cavalo...e uma viola. De nylon. À tira-colo. Quando cheguei, ele estava tocando, despretensiosamente. E eu, muito admirado como sempre com os artistas de rua e principalmente com quem faz musica, fixei o olhar e curti o som. Fiquei do lado dele. Entre um dedilhado e outro... Ele começou a tocar o clássico do Dire Straits: "Sultans Of Swing". E comecei a viajar na vibe do cara... Á minha frente, pessoas... Transeuntes despretensiosos fugidios à chuva com seus guarda-chuvas. Mais à frente, o movimento caótico dos ônibus e carros. Ainda mais à frente... As gotas de chuva. E tudo isso numa paisagem cor de chumbo das nuvens... Ahhh, e o som... E eu viajando... Pensando na cidade... Olhando as gurias (tão... mas tão lindinhas) passando pra cá e pra lá... Pensando em como Porto Alegre é encantadora. Despretensiosamente, encantadora.]


Mas é nessa poesia que resguardo
A beleza da cidade
Que faz as vezes de um quadro
No olhar vívido, da multiplicidade

Onde cantam alegrias
Que a memória i'nda guarda
N'um bocó de poesias
Construída em cada quadra

A caneta que não cansa,
No papel que quase acaba.
Onde faz juras de lembrança,
E não para de mima-la

Neste ônibus tardio
o violeiro se despede,
Num dedilhar que não se mede,
E desse som que me arrepio.