30 setembro 2009

O Camaleão

Na densa selva urbana, vive o camaleão.
Sua cor ninguém sabe. Seus olhos nada dizem. Sua voz não se faz ouvir. Seu pensamento não se põe a voar. Esta sempre a se adaptar.
Nada copia. Tudo recria.
E tudo então muda, pois ele muda. Nem sempre escolhe mudar, mas já não faz mais diferença. Mudar é sua vida.
Muda pra si mesmo. Muda pelo outro. Muda por ninguém. Muda tanto que talvez nem ele mesmo saiba quem é.
Ora azul, ora vermelho, ora verde, ora invisível. Olha-se uma vez no espelho e desta vez está amarelo. Se olhar outra vez já mudou de cor.
Às vezes ri. Às vezes se cala. Às vezes busca em sua busca infinita, sem ter esperança de um dia encontrar a resposta que tanto procura.
Quem sou eu?
Mudar.
Não é uma mentira. Essa é sua verdade. A única que conhece. Não muda por querer. Muda pra sobreviver. Mudar é sua defesa. É mudando que ele vai vivendo.
Pena que quando morrer, ainda não saberá quem é.

26 setembro 2009

Um Lugar Seguro

Acordou assustado mais uma vez. O pequeno coração batia acelerado e ele suava um pouco. Olhou ao redor sem realmente enxergar e um suspiro afobado escapou de seus lábios. Levantou em um salto, jogando os cobertores para um canto qualquer e disparou de seu quarto na direção do único lugar onde ele sabia que haveria conforto para seus medos.
Ao sair do quarto, deparou-se com o corredor mergulhado na penumbra que se estendia na sua frente. Precisou passar por ele correndo, cheio do temor de que as sombras o agarrassem para envolvê-lo na escuridão.
Aproximou-se da porta do quarto dos pais e aguardou um breve instante, pensando que não queria continuar incomodando os pais com isso, mas um ruído qualquer o tirou de seus pensamentos e o fez lembrar das terríveis criaturas que o aguardavam em seu quarto, ferozes e famintas. Elas não esperariam muito mais. Logo estariam a sua procura.
Moveu a maçaneta o mais devagar que sua pressa, provocada pelo medo, permitiu. A porta estava destrancada. Suspirou de alivio. Os pais já sabiam que em certa hora da noite o filho iria até o quarto deles e preferiam deixar a porta aberta a sua espera. Tinham certeza que essa fase de pesadelos passaria logo.
Fechou a porta atrás de si e só de adentrar no aposento sentia-se mais seguro, como se todo medo não o tivesse como segui-lo ali. Era por isso que via o quarto dos pais como um tipo de templo, onde nenhum mal era permitido. Ali ele estava a salvo.
Não queria acordar os pais novamente com a velha história de ter tido um pesadelo, por isso deitou-se aos pés da cama, bem na beirada. Estava um pouco frio, mas ele sabia que iria acordar embaixo das cobertas e envolto pelo abraço aconchegante de sua mãe. Não havia com o que se preocupar.
O sono logo veio e ele adormeceu tranqüilo. Ali não havia temores, pesadelos, monstros, sombras ou qualquer coisa que pudesse devorá-lo. Ali nada o perturbava. Ali era um lugar seguro.

22 setembro 2009

Infância (des)conhecida

1991. Amália e a cidadezinha interiorana. As ruas de paralelepípedos, os canteiros de flores, os vizinhos conhecidos da família e de toda a cidade. Aquela rua específica, uma das entradas principais do município. O dia nublado, ameaçando uma chuva forte. A quadra ainda mais pacata, mais deserta. Amália fora de casa, na esquina, descobrindo o mundo. Insistente que era, queria experimentar uma nova visão além. Avançando pela calçada, vislumbrou a torre da igreja em frente à praça - não ficava muito longe dali. Contemplou por poucos segundos até que...
... o despertador toca. Mais um dos sonhos de infância-não-vivida-daquele-modo de Amália. Não se lembrava de já ter estado em uma cidade tão pequena antes. Seria uma vida passada? Seria uma inspiração para um conto? Seria uma forma de aviso, um sinal para Amália prestar atenção em detalhes que poderiam ser importantes?
Desceu ao sótão de sua casa: o atelier de pintura. Diversos quadros não acabados, a inspiração que aparecia e sumia repentinamente. Sem nem pensar muito, começou um novo quadro. Procurou reproduzir fielmente a rua, a igreja, a menina de costas, o canteiro, os paralelepípedos, a calçada. E, enquanto concluía, pensava na possibilidade do quadro representar a lembrança de alguém tão inesperado como seu sonho.

15 setembro 2009

AU-TENTE-CIDADE

Noite de forte calor em alguma grande cidade nordestina, o filho sentado na rede faz palavras-cruzadas, não sabendo a resposta de uma questão ele pergunta:
- Painho, o que é sinônimo de município e tem seis letras?
O cachorro da casa então emite um único latido, e com sotaque típico da região o pai responde:
- Tente... Cidade.

autenticidade





















11 setembro 2009

O tênis que você usa

Eu sei que não devia, mas eu lembrei da Silvia.
Ela queria ser única, autêntica. Estava cansada daquela vidinha mediana e cotidianamente frustrante que vivia. Queria se destacar. Não ser apenas mais uma no meio do comboio indo para qualquer lugar, lugar nenhum. E para mudar resolveu começar comprando um tênis. Um tênis novo, daqueles cheios de conceitos embutidos que ninguém entende. Com estampa, não poderia ser liso. Esse tênis que foi feito por alguém. O Seu Zé. Que teve uma ideia. Tinha o modelo pronto, mas podia inovar. Resolveu fazer uma costura diferente, que na sua opinião ficava bem melhor. Tinha visto isso numa revista de Moda da sua filha de quinze anos. Revista estrangeira, coisa completamente atual, quase 2.0, mesmo não sabendo direito o que significava isso. Enquanto sorria por sua genialidade, o Dr. Cláudio, dono da empresa, passou por ele. Cláudio, ou Dinho como os mais íntimos o chamavam. Ele tinha desenhado aquele tênis, com o próprio pulso, numa folha de papel qualquer e uma caneta azul. Não, me desculpe. Não era qualquer folha nem qualquer caneta. Era a caneta. Era linda, banhada a ouro. Um velho amigo seu que havia lhe dado, ou vendido, dependendo do ponto de vista, que para ele sinceramente não importava. Pois a caneta era feita a mão também, edição limitada. Única. Matt, o amigo. Já o conhecia de longa data, apesar de ser apenas um rapaz de trinta e poucos anos. E mesmo tão novo já era conhecido mundialmente por suas canetas banhadas a ouro, modelos feitos especialmente para quem fosse muito cheio da grana e lhe fizesse um pedido. Ele comprou. Queria ser único. A caneta feita por Matt. Um guri de trinta e poucos anos que adorava extrapolar em suas canetas. Era esse seu negócio, fazer de uma caneta, simples instrumento em uma obra de arte. Arte cara, afinal era única. Matt aprendeu a fazer canetas banhadas a ouro num curso em Viena. Um outro velho amigo seu que havia lhe indicado. Era caro, mas valia a pena. Pagou, e agora vende suas ideias. Diz ele que é autêntico pois suas canetas estão sempre seguindo as tendências da moda, dos renomados carinhas de Paris. Esses carinhas que pegam referências em tudo que já foi feito, para fazer algo novo e autêntico.
E foi pensando na Silvia, já de tênis novo, que enfim olhei para os meus tênis. Sorri.
Ufa!, não sou a única.

08 setembro 2009

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Não escrevo poemas: não tenho certeza
se sei escrevê-los.
O que eu escrevo é sobre e para diferentes figuras,
diferentes Andiaras
(uma tão destoante da outra!)
e diferentes “alguéns”, tão variados nas suas formas de ser.
Certo? Errado? Bom? Mau?
Apenas definições e convenções?
Ser o que se é, com suas dores, delícias
e jeitos múltiplos:
tente.
Ainda assim terá
(e sempre será)
autenticidade em sua essência.