08 julho 2010

qualquer coisa

Foi a primeira vez, em um dia frio de junho, que duas mentes se uniram naquela praça. Pela distância, pelos pensamentos e pela vontade de algo de que ambas não tinham conhecimento.

Pode ser qualquer coisa, eu pensei. Então para que pensar? Se pode ser qualquer coisa - qualquer coisa -, que seja qualquer coisa, então.
Ele observava de longe, sentado no banco mais afastado que pôde encontrar vago. Olhava ao redor fingindo desinteresse por tudo aquilo: as crianças encasacadas correndo, os velhos passeando, uns casais sentados sob o sol sobre mantos na grama úmida, bicicletas, cachorros e bolas passando. Ele fingia bem aquele desinteresse, enquanto bebericava o quentão no copo que segurava com as duas mãos, a fim de mantê-las temporariamente aquecidas.
Eu passeava os olhos pelas páginas de um livro já lido, fazendo anotações em um pequeno caderno, olhando para o mesmo cenário; com interesse não fingido - olhos de quem aprecia.
Ele me olhava de seu banco, longe, do outro lado da praça, e pensava se valeria a pena. Uma tentativa de aproximação, de diálogo. Achou-me bela, julgou minha beleza despretensiosa mas consciente, imaginou que livro eu tinha em mãos e o que estaria escrevendo.
Eu apoiei minha caneta sobre o livro enquanto mudava as pernas já meio dormentes de posição. Olhei para ele em seus trajes de inverno, enrolado em uma manta que escondia seu pescoço. Os cabelos sendo bagunçados pelo vento leve que soprava, o vapor saindo de sua boca enquanto ele respirava. Divaguei sobre a hipótese de conhecê-lo, sobre o que falaríamos quando estivéssemos lado a lado confortados pela intimidade - será que ele gostava de chocolate branco?
Ele pensava no dia seguinte e nas coisas que gostaria de fazer antes do início da semana. Imaginava qual seria o gosto de fazê-las em minha companhia - será que eu gostava de chocolate branco?
Eu, aqui, em meu mundo, não soube que rumo dar ao que se pronunciava. Não tive certeza de qual seria meu foco dali por diante: a observação do mesmo cenário por olhos diferentes, a eficiência ou não de aproximações e diálogos entre desconhecidos ou os temas que me foram estabelecidos anteriormente.
Pode ser qualquer coisa, ele pensou. Então para que pensar? Se pode ser qualquer coisa - qualquer coisa -, que seja qualquer coisa, então.

05 julho 2010

Junho

Acho que primeiro me apaixonei pelos dentes os dentes
são perfeitos não pode haver uma boca mais perfeita.
Te amo Max. Te amo mas em janeiro meu boneco.
As Meninas, Lygia Fagundes Telles

Ele vive no Brasil e por isso não existem bonecos-de-neve, mas ainda vai ao parque sentar nas praças e imaginar que cada árvore é um boneco que cada boneco é uma árvore - cada criança é um adulto e adulto é criança. A praça é ele, e ele é a praça. A praça se chama Camilo e ele se chama Praça das Flores. Ninguém nunca parou para pensar o que aconteceria se todos os papéis do mundo fossem invertidos, não os papéis de destino [?], mas os papéis representados - porque ele é a representação de um jovem e um jovem é a representação do ser humano: mas e se a representação dum jovem fosse um cão? E se algumas pessoas tivessem a habilidade de viver 12 segundos da vida do outro, Camilo pensa mas não sabe. Camilo, não: Praça das Flores. É em junho que a praça fica mais bonita por causa do: frio. Camilo não é feio e sai em fotografias com casacos forrados e jeans desbotados mas mesmo assim não é feio. Todos dizem que é ele quem mais chama a atenção nas fotos: mas Camilo diz que quem chama é o frio. O frio não sai em fotos, mas ele diz que sim, porque se manifesta nas feições de cada um. Cada um de nós tem uma feição para cada estação, e a feição de Camilo no inverno é a mais bonita. 

A minha feição mais bonita 
É a que não tenho pra você.
A que escondo todo dia
Pra te ver. A que cultivo todo o ano
Pra me ter
Guardando todo o santo dia
(Um dia pra
Você.)

Em junho a praça fica mais bonita, assim como Camilo. A praça mais intimista e Camilo mais hermético. Eu acho que no fundo no fundo, ser hermético é ser bonito - ser bonito é mais hermético. Eu tenho um pouco de intimismo dentro de mim, quer dizer, porque ninguém lê meus pensamentos. Mas Camilo se esquece: se esquece que a praça suga tudo, as Flores captam a luz mais ínfima e o pensamento mais retrógrado, não há como esconder-se apenas resta o conformismo de que um a um somos herméticos para um e para todos, Camilo não lê o pensamento dos outros, mas os sente: mas entre saber e sentir - esconde-se um abismo que mata tanta gente, que afoga sim quem pense em cruzá-lo. Camilo é diferente porque tenta. Camilo tem Junho dentro de sua alma, e Junho tem Camilo em sua estação: porque no inverno todos ficam mais bonitos. Não por esconderem em casacas suas gorduras e estrias, mas porque no inverno todo mundo é hermético. E ser hermético é bonito: não pros outros: mas pra si, porque Camilo sabe que a beleza está nos olhos de quem vê: e só o intimismo cria tal olhar.

Camilo corre pela praça
E esquece que pisa em folhas dumas árvores
Que antes eram ele. As árvores
Eram bonecos-de-neve.
Bonecos não falam:
Mas escutam.
Adultos não escutam:
E parecem só hablar.

Adultos em Junho.
Camilo em cada estação
(Não de trem, mas daqueles que se sente
Pela pele. Aquelas
Que os poetas tentam escrever.)
Camilo não escreve:
Camilo pensa.

(Camilo em Junho é mais bonito.)



02 julho 2010

Papel em branco

Queria ter um quarto vazio. Se eu um dia tiver um apartamento só meu, gostaria de ter um quarto extra. Um quarto que ficasse vazio, sem absolutamente nada dentro. Paredes brancas e o espaço. O vazio.
Tenho uma verdadeira paixão por páginas em branco. É o que há de mais estimulante. Imagina tudo que pode surgir, tudo que pode ser feito! É um sentimento de liberdade, de total independência. Não precisamos nos preocupar com o que vai ser feito, com como ou quando... Existe apenas a certeza que qualquer coisa pode sair dali. Transformar, criar, inventar, mudar, destruir. O que der vontade.
Tento carregar comigo essa idéia: de tudo que faço, nada precisa ser feito, tudo pode ser feito. O mesmo penso das pessoas que conheço, elas são papéis em branco, papéis apenas.
Alguns papéis vêm com linhas já desenhadas, outros são muito antigos, já meio amarelados, mas ainda sim, prontos para qualquer coisa. Alguns estão aos pedaços, rasgados, amassados, quase prontos para o lixo. Alguns são coloridos, engraçados. Alguns vivem em cadernos ou blocos, outros são avulsos, solitários. Tem papel manchado, sujo. Tem papel com coisas escritas, desenhadas e alguns ainda guardam vestígios de algo que foi apagado.
Qual é o seu papel? Deu branco?
Que ótimo, é uma oportunidade para escrever algo novo.