22 setembro 2009

Infância (des)conhecida

1991. Amália e a cidadezinha interiorana. As ruas de paralelepípedos, os canteiros de flores, os vizinhos conhecidos da família e de toda a cidade. Aquela rua específica, uma das entradas principais do município. O dia nublado, ameaçando uma chuva forte. A quadra ainda mais pacata, mais deserta. Amália fora de casa, na esquina, descobrindo o mundo. Insistente que era, queria experimentar uma nova visão além. Avançando pela calçada, vislumbrou a torre da igreja em frente à praça - não ficava muito longe dali. Contemplou por poucos segundos até que...
... o despertador toca. Mais um dos sonhos de infância-não-vivida-daquele-modo de Amália. Não se lembrava de já ter estado em uma cidade tão pequena antes. Seria uma vida passada? Seria uma inspiração para um conto? Seria uma forma de aviso, um sinal para Amália prestar atenção em detalhes que poderiam ser importantes?
Desceu ao sótão de sua casa: o atelier de pintura. Diversos quadros não acabados, a inspiração que aparecia e sumia repentinamente. Sem nem pensar muito, começou um novo quadro. Procurou reproduzir fielmente a rua, a igreja, a menina de costas, o canteiro, os paralelepípedos, a calçada. E, enquanto concluía, pensava na possibilidade do quadro representar a lembrança de alguém tão inesperado como seu sonho.

15 setembro 2009

AU-TENTE-CIDADE

Noite de forte calor em alguma grande cidade nordestina, o filho sentado na rede faz palavras-cruzadas, não sabendo a resposta de uma questão ele pergunta:
- Painho, o que é sinônimo de município e tem seis letras?
O cachorro da casa então emite um único latido, e com sotaque típico da região o pai responde:
- Tente... Cidade.

autenticidade





















11 setembro 2009

O tênis que você usa

Eu sei que não devia, mas eu lembrei da Silvia.
Ela queria ser única, autêntica. Estava cansada daquela vidinha mediana e cotidianamente frustrante que vivia. Queria se destacar. Não ser apenas mais uma no meio do comboio indo para qualquer lugar, lugar nenhum. E para mudar resolveu começar comprando um tênis. Um tênis novo, daqueles cheios de conceitos embutidos que ninguém entende. Com estampa, não poderia ser liso. Esse tênis que foi feito por alguém. O Seu Zé. Que teve uma ideia. Tinha o modelo pronto, mas podia inovar. Resolveu fazer uma costura diferente, que na sua opinião ficava bem melhor. Tinha visto isso numa revista de Moda da sua filha de quinze anos. Revista estrangeira, coisa completamente atual, quase 2.0, mesmo não sabendo direito o que significava isso. Enquanto sorria por sua genialidade, o Dr. Cláudio, dono da empresa, passou por ele. Cláudio, ou Dinho como os mais íntimos o chamavam. Ele tinha desenhado aquele tênis, com o próprio pulso, numa folha de papel qualquer e uma caneta azul. Não, me desculpe. Não era qualquer folha nem qualquer caneta. Era a caneta. Era linda, banhada a ouro. Um velho amigo seu que havia lhe dado, ou vendido, dependendo do ponto de vista, que para ele sinceramente não importava. Pois a caneta era feita a mão também, edição limitada. Única. Matt, o amigo. Já o conhecia de longa data, apesar de ser apenas um rapaz de trinta e poucos anos. E mesmo tão novo já era conhecido mundialmente por suas canetas banhadas a ouro, modelos feitos especialmente para quem fosse muito cheio da grana e lhe fizesse um pedido. Ele comprou. Queria ser único. A caneta feita por Matt. Um guri de trinta e poucos anos que adorava extrapolar em suas canetas. Era esse seu negócio, fazer de uma caneta, simples instrumento em uma obra de arte. Arte cara, afinal era única. Matt aprendeu a fazer canetas banhadas a ouro num curso em Viena. Um outro velho amigo seu que havia lhe indicado. Era caro, mas valia a pena. Pagou, e agora vende suas ideias. Diz ele que é autêntico pois suas canetas estão sempre seguindo as tendências da moda, dos renomados carinhas de Paris. Esses carinhas que pegam referências em tudo que já foi feito, para fazer algo novo e autêntico.
E foi pensando na Silvia, já de tênis novo, que enfim olhei para os meus tênis. Sorri.
Ufa!, não sou a única.

08 setembro 2009

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Não escrevo poemas: não tenho certeza
se sei escrevê-los.
O que eu escrevo é sobre e para diferentes figuras,
diferentes Andiaras
(uma tão destoante da outra!)
e diferentes “alguéns”, tão variados nas suas formas de ser.
Certo? Errado? Bom? Mau?
Apenas definições e convenções?
Ser o que se é, com suas dores, delícias
e jeitos múltiplos:
tente.
Ainda assim terá
(e sempre será)
autenticidade em sua essência.

17 julho 2009

O começo do Fim

Os pais de Rafa tiravam uma sesta no seu quarto. O irmão dela havia saído para jogar fliperama no centro da pequena praia. Estavam enfim sozinhas no seu quarto. Manu deitada no beliche de cima e ela no de baixo. Rafa saiu do quarto, voltou em cerca de 5 minutos sorrindo. Passou pela porta e a trancou.
- Desce aqui - falou deitando-se na cama de baixo novamente.
Manu deitou ao seu lado.
- Estamos sozinhas - beijou -a.
- Eu queria perguntar uma coisa para você... - disse dando mais um beijo.
Rafa tinha a impressão que se a beijasse mais algumas vezes faria com que o seu pedido fosse visto de uma maneira mais tranquila.
- Pergunta depois - se virou ficando por cima dela. Beijou seu pescoço, descendo pelo seu colo.
- Vem cá - segurou levemente sua cabeça fazendo com que seus olhos ficassem na mesma altura - É sério, queria muito falar com você.
Cada vez que Rafa pensava nesse assunto sua barriga congelava. Sentia a ponta dos seus dedos ficarem frias também e seu coração bater forte. Queria falar isso de uma vez, simplesmente falar e pronto. Mas tinha medo. Era um passo muito grande para as duas. Pra ela era algo tão importante que fora justamente por isso que demorara tanto tempo para falar. Mas tinha medo. Na verdade talvez fosse o medo, ele sozinho, puro e cru, que a fizera com que não falasse isso antes. Esse medo que a consumia. E se ela simplesmente dissesse que não? Estaria pondo seu relacionamento no lixo por um capricho. Mas seria capricho seu pedido? Não estava mais do que na hora disso acontecer?
- Não pode ser depois? - Manu deu mais um beijo longo em sua boca, mas Rafa segurou suas mãos tentando impedi-la. Olhou-a nos olhos. Ela sorriu mordendo o canto da boca.
- Ta bom, fala - Manu por fim disse, deitando-se novamente ao seu lado.
Ela escorou sua cabeça na sua mão esquerda. Passou sua mão direita sobre o rosto de Manu. Todo aquele tempo que demorava para falar servia para tomar coragem. E se aquila não fosse a melhor hora para falar aquilo? Mas que hora seria? Já estava há muito tempo adiando aquela conversa, quanto tempo mais levaria para falar? Esperaria mais o que acontecer?
- Eu gosto muito de você Manu - deu mais um beijo.
- Eu também gosto de você, era isso? - perguntou enquanto tentava voltar ao seu posto.
Ela riu abraçando-a.
- A gente já tá ficando há bastante tempo né?! - ia fazer isso, aos poucos inserindo o assunto. Talvez estivesse aí a salvação para seu medo, quando visse já tinha falado e acabado com toda sua aflição. Respirou um pouco mais aliviada.
- Sim - Manu respondeu já imaginando qual seria sua próxima frase. Provavelmente ela gostaria de ter um relacionamento mais sério. Não que ele já não fosse, mas algo com pelo menos um nome. Queria talvez falar para mais pessoas que estavam juntas, o único que sabia era o André, o melhor amigo delas. Mas só de pensar em firmar um relacionamento sentia calafrios estranhos, um medo e uma vontade de fugir. Não gostava da ideia de ficar presa a alguém, mesmo que esse alguém fosse a Rafa, única pessoa do mundo em que ela confiava plenamente. Sentiu seu coração bater mais forte, não queria ter aquela conversa. Sentia medo. Sentia receio que aquilo que ela imaginava, em instantes sairia pela boca de Rafa, e então surgisse uma situação que ela não estava esperando. Ou pelo menos, esperava mas não desejava.
- Eu gosto de mais disso tudo que a gente tem - falou com seus olhos brilhando, em meio a um sorriso. Por trás de seu sorriso, fechado com seus dentes muito apertados, tentava não deixar escapar a pouca coragem que tinha.
- Eu também gosto do jeito que as coisas estão agora - frisou o "agora".
Ela concordou com a cabeça. Ficaram alguns instantes em silêncio. Manu percebia em seus olhos que ela queria falar alguma coisa, que estava tentando achar algum jeito de colocar tudo que tinha em mente para fora. Ela conhecia Rafa. Sentia em sua expressão que seus pensamentos estavam a mil. E isso a preocupava. Era isso mesmo que estava imaginando, logo mais ela iria falar aquilo que há tanto tempo temia, e fazia esforço para que não acontecesse.
- Fala o que você quer falar, estou aqui - falou enfim se arrependendo. No fundo ela não gostaria de ouvir o que ela tinha para falar. Se é que ela iria pedir em namoro. Fazia dias que ela tocava nesse assunto, perguntava o que achava disso, contava que não sei quem estava namorando. Um dia chegara a colocar o "também" depois de dizer que Mariana e o Nando estavam namorando. Manu fingiu não perceber nada. Não queria passar por isso, ter que se comprometer. A palavra comprometimento lhe dava náuseas. Ela não queria ficar com outras pessoas, mas só de pensar em ficar só com uma pessoa para sempre ficava angustiada. Manu gostava de ser livre, e gostava de ficar com ela quando sentia vontade. Tudo bem que desde que voltara do seu intercâmbio nunca mais haviam se desgrudado, mas em pensar que ela "deveria" ficar com Rafa pois ela era sua namorada dava vontade de nunca mais ficar com ela.Talvez Rafa tivesse percebido que ela estava pensando nisso, pois tentou cortar seus pensamentos falando um pouco devagar, como se medisse cada palavra que dizia.
- Falei com o André esses dias... - sua respiração parecia não querer sair, seus olhos mal piscavam.
- Sobre o que vocês falaram?
- Sobre um monte de coisas, sobre eu e você.
- Sobre nós duas, por quê?
- Perguntou se estávamos namorando... - seus olhos encaravam agora a janela. Os pingos de chuva batiam forte contra o vidro. De vez em quando se ouvia barulho de trovões. Ela esperou terminar o estrondo que vinha dos céus para continuar a falar. No meio do estampido tentava acalmar seu coração.
- E eu não soube o que responder – continuou.
- A gente está juntas, não está? É isso que importa ter o que a gente tem - sorriu tentando persuadí-la de que isso só bastava.
- E o que a gente tem? - perguntou voltando-se enfim para Manu, porém não ousava olhá-la nos olhos.
- Isso - beijou-a.
- E o que é isso que a gente tem?
Tentou beijá-la novamente, mas Rafa segurou sua boca gentilmente.
- Não sei, isso é realmente importante? Dar nome as coisas? - Manu já estava ficando desesperada. Rafa ia mesmo falar aquilo que temia? E se falasse, o que ela iria responder?
Rafa já não sentia mais seu coração bater, nem sua respiração. Estava perdida em meio a seus pensamentos e ao seu medo de simplesmente deixar sair pela sua boca tudo que tinha para falar.
- Você acha que não? Nem a gente sabe o que a gente tem... - seu semblante mostrava uma leve tristeza.
- Mas a gente tem uma coisa mágica, algo surreal, pós-perfeito. É isso que a gente tem. Desde quando voltei não teve um dia que a gente não se falou, que não ficamos juntas de alguma maneira.
- E que nome você dá pra isso? - ela insistia em dar nome aos bois, pensou Manu.
- Amor? - sorriu carinhosamente para ela.
- Também, mas quando as pessoas se amam... elas...
- Elas se beijam - tentou novamente uma investida. Mas Rafa manteve firme sua mão em frente a sua boca impedindo-a.
- Mas além disso elas...
Manu não queria por hipótese alguma continuar com aquela conversa. Mas os olhos de Rafa esperavam alguma reação dela. Qualquer coisa.
- Elas...? - foi o melhor que pode dizer.
- Elas têm compromissos, fazem sabe... Essas coisas que pessoas normais fazem.
- Mas a gente faz tudo que as pessoas normais fazem Rafa...
- Às vezes parece que não.
- Aonde você quer chegar com isso? - toda vez que abria a boca, tinha a certeza de que o melhor a fazer era ficar calada.
- Não sei Manu...
Manu mais uma vez ficara em silêncio, deitando-se novamente ao seu lado. Ambas olhavam para o estrado da cama de cima. Rafa tentava puxar uma felpa de madeira que não queria sair - Sabe, quando o André me perguntou se... - fez uma pausa de alguns segundos, focou seus olhos apenas na felpa - se a gente tava... sabe, namorando - seu rosto ficou levemente corado, continuou puxando a felpa - eu não soube o que responder.
Ela queria namorar. Bem, ela queria travar compromisso sério, para ela aquilo que elas tinham não bastava. Bem coisa de mulher, pensou Manu nervosa. Mas sentindo o peso daquele silêncio, resolveu falar - É, a gente não ta namorando...
- Não estamos - disse Rafa com uma voz mais fraquinha.
- E qual o problema disso?, a gente continua se gostando, continua se vendo sempre que podemos, eu não fico com ninguém, você também não fica com ninguém. Não sei que diferença faz dizer que isso é namoro ou não.
- É, vai ver que não faz mesmo... - falou conseguindo enfim retirar a felpa da madeira. Rafa pensava que talvez, vendo por esse ângulo, elas não precisassem namorar. Tava bom do jeito que tava. Tentou acalmar o seu coração, voltando-se para Manu.
- Pra você não faz diferença isso né?
- Não, eu continuo apaixonada por você - sorriu abraçando-a. Deitou sua cabeça no seu colo.
- Mas eu também sou apaixonada por você... É por isso que eu penso nessas coisas.
- Que coisas? - Manu sentia que precisava mudar de assunto. Pensou até em falar sobre o tempo e a chuva que caía lá fora.
- Namorar...
Seu coração deu um pulo. Não sabia de onde viera àquela repulsão pela palavra namoro, mas sentia. Permaneceu em silêncio. Sabia que qualquer coisa que ela dissesse poderia se voltar contra ela mesma, resolveu se calar o máximo que pode, ou que a conversa permitia.
- Manu... Eu andei pensando, eu gosto muito de você, eu gosto muito de ficar com você.
- Eu também gosto, você sabe disso... Não sei qual é o problema - sorriu suspirando, agora chegara sua vez de procurar uma felpa para puxar. Talvez ela pudesse desfazer a tensão que aquela conversa tinha. Manu conseguia sentir o peso de cada palavra que era dita, e principalmente daquele silêncio que tentava impor. Mas parecia que Rafa estava decidida a falar o que tinha para falar. E talvez nem felpa, nem o silêncio, nem os trovões lá fora a fariam se calar.
- O problema é que... Eu quero mais do que isso com você, não quero ser só uma amiga sua que você fica.
- Mas você sabe que não é só uma amiga com quem eu fico.
- Então eu sou o que?
- Você é a menina mais linda que eu conheço.
Manu sorriu para si mesma, valia qualquer coisa para impedir que Rafa falasse o que estava prestes a falar.
Ela fez que não com a cabeça. Manu teve a impressão que enfim Rafa entendera que ela sabia do que ela estava falando. As duas sabiam. Até o tempo lá fora sabia, pois naquele instante a chuva acalmara, fazendo com que o silêncio naquela sala preenchesse todas as lacunas daquela conversa.
- Manu, eu quero perguntar uma coisa... Na verdade te pedir uma coisa. - respirou forte. Pareceu que sua respiração dera mais vigor a ela, pois falou com mais força que antes, com mais convicção e coragem.
- Manu...
- Fala... - disse baixinho, quase como suplicando para que ela não falasse nada.
Rafa fechara os olhos. Suas mãos suavam geladas. Ou ela falava ou ela se calava. Porém se ficasse quieta estaria enterrando aquele assunto de vez, afinal não cabia mais adiar aquela conversa. Seu medo tomara conta de tudo, não conseguia abrir a boca. Será que ela estaria enganada de falar aquilo? Será que era precipitado de sua parte fazer o pedido?
Todas as dúvidas começaram a surgir ao mesmo tempo. E seu medo dera lugar à insegurança. E se ela simplesmente não aceitasse seu pedido, ela estragaria toda aquela coisa linda que tinham? Mas se ela não falasse, ela não conseguiria acalmar seu coração que batia aflito dentro do seu peito. Quando abriu a boca, teve receio que ele saísse pulando por ela. Mordeu os lábios mais forte, tentando tomar coragem. Seria então no três, tentou contar mentalmente.
Um.
E se ela não aceitar?
Dois.
E se for a coisa errada a se fazer? E se isso fizesse com que ela se distanciasse? Rafa conhecia Manu desde sempre, eram amigas de infância. Sabia que ela era a menina mais insegura que já conhecera. Que tinha medo de relacionamentos, mas talvez não fosse essa a hora de fazer com que Manu perdesse esse seu medo de namoro?
Três.
Respirou forte.
Não, talvez fosse melhor contar até quatro.
Um.
É fácil, é só pedir.
Dois.
Abrir a boca e falar.
Três.
O máximo que pode acontecer é ela não responder.
Três e meio.
E continuar tudo como está.
Três e quase quatro.
E se continuar tudo como está, ainda assim estará bom, afinal elas estarão juntas.
E quatro.
Respirou mais uma vez fundo. Sentiu seu coração pular com força, era chegada a hora. Era simples, repetia para si mesma. Era só falar. Já tinha contado até quatro. Já tinha perdido noites em branco pensando na melhor maneira de dizer isso à Manu. Já tinha dado início àquela conversa. Era simples, repetia para si mesma. Era só falar.
- Rafa... Eu gosto de você, não entendo pra que isso agora.
- Quer-namora-comigo? – interrompeu falando tão rápido que por alguns segundos ficou pensando se não havia falado de verdade, pois Manu simplesmente se calara.
Houve um longo silêncio. Era um silêncio tão pesado que Rafa podia ouvir ele ecoar por todo o quarto.
Por sorte, daquela posição em que estavam, Manu com a cabeça escorada no seu colo olhando para baixo, ela não conseguiu enxergar a cara de horror de Manu. Manu sabia que algum dia esse momento chegaria e ela precisaria responder alguma coisa. Qualquer coisa, mas deveria pronunciar alguma palavra. Mas não saia nada. Permaneceu um longo tempo em silêncio. Como dizer para Rafa que ela não gostava dessa idéia de compromisso, e que assim como estavam já bastava para ela sem magoá-la? Manu não queria perder aquela menina, ela gostava de ficar só com Rafa. Não duvidava de relacionamentos monogâmicos. Não era isso. Acreditava em namoros, mas com os outros. Não com ela. Namorar para Manu parecia infringir seus direitos de liberdade, de um ser único. Parecia que seriam obrigadas a serem duas pessoas em uma só. Não era isso que significava namorar? Aliás o que seria namorar se não era aquilo que elas tinham, então para que precisariam dizer, com todas as vogais e consoantes que estavam namorando? Mas ela tinha que responder aquilo, e precisava ser "sim". O não estava fora de cogitação, porque isso significaria magoá-la, significaria perdê-la por uma bobagem. Mas será que seu jeito de ser era uma bobagem a ser passada por cima? Manu aprendera desde cedo que deveria lutar pelas coisas que acreditava, porém ela simplesmente não acreditava em namoros. Ela achava lindo seus tantos heróis morrendo pelas coisas que acreditavam. E chegou a conclusão de que ou ela morria ou ela vivia. Mas ela não queria morrer, não naquele momento. Ela não estava disposta a morrer. E se para isso ela precisaria aceitar seu pedido mesmo sem acreditar nele, então ela o faria. Mesmo que para Manu soasse como uma prisão, como algo contra a sua natureza. Que se prender com outra pessoa era assinar o óbito de qualquer relacionamento pré-existente. Mas ela queria viver, então já havia feito sua opção. Ela que arcasse com as consequências.
Precisava aceitar, pensou mais uma vez. Era só dizer que sim. Era simples. Só abrir a boca e falar. O máximo que poderia acontecer era estragar aquela coisa linda que elas tinham. Mas se isso acontecesse era porque elas não deveriam continuar namorando. Era só dizer que sim e aquele suplício acabaria. Colocou seu medo, sua angústia e principalmente sua reprovação de lado. Deu lugar para o amor que sentia por Rafa. Isso era mais importante. Respirou fundo. Ficou com medo de que Rafa sentisse seu coração batendo forte. Olhou para a janela, esperando que começasse a chover novamente, que acontecesse alguma coisa, que desse um barulho lá fora para que ela não precisasse responder aquele pedido. Esperou mais alguns segundos ainda que voltasse a chover. Mas lá fora tudo estava calmo. Já seu coração continuava a bater enlouquecidamente. Era simples. Era só falar.
- Manu...
- Quero - falou muito baixo, para dentro como se quisesse fazer voltar cada letra que havia pronunciado.
Naquele instante Rafa respirou aliviada, sentindo a maior felicidade do mundo.
Naquele instante Manu parou de respirar, sentindo que tomara a pior decisão de sua vida.

08 julho 2009

Fragmentos

- Quando?
- Hoje, já falei!
- Calma!
- To calmo.
- To vendo.
- Então pára de pedir calma!
- Ta, parei, não precisa se estressar.
- Você só pode estar brincando…
- Mas me conta, como foi?
- Foi só um sonho.
- Então porque você está nervoso?
- Eu não to nervoso, mas que saco!
- To vendo.
- Eu to calmo.
- Percebi.
- Foi só um sonho.
- Sim foi só um sonho, não entendo porque você está assim.
- Porque foi só um sonho.

24 junho 2009

Memórias.

“Observei o anoitecer calmamente. Era verão, mas eu não o desfrutava como a maioria. Aliás, sequer o desfrutava. Já fazia meses que eu estava naquele quarto branco de hospital, dormia numa cama alta de hospital, sentia o cheiro de comida de hospital. As pessoas, lá, eram gentis. Mas aquele não era meu lar. Nunca quis viver por muito tempo no centro da cidade, gosto da calmaria dos lugares mais afastados. Mas não tinha escolha. Aquela era uma situação difícil para mim e para todos.”
Naira, ao escrever, sentiu-se escrevendo sua autobiografia. Parou. Não queria que aquele projeto de texto tivesse um tom, talvez, banalizado. Ela precisava escrever sua história, mesmo que só ela tivesse acesso e relesse tantas e tantas vezes.
Continuou:
“Soube da doença, mas ela foi fulminante. Não deu tempo. Larguei tudo em casa para dedicar-me ao hospital por inteiro: da cama ao banheiro, volta pra cama, troca de roupa, sai a caminhar lentamente pelos corredores, chega à sala para fazer novos exames, o que será que está acontecendo? De volta ao quarto, familiares chegam, bem como os atenciosos enfermeiros, médicos aparecem para fazer suas visitas... de médico, chegam as refeições, maçã, sopa, pãozinho, leite, geleia. Alimentar-se é difícil, cada vez mais e...”
Aquelas lembranças são demais para Naira, que chora compulsivamente. Não queria guardar essas lembranças tão tristes de sua mãe. Não queria passar pela próxima etapa, a de vê-la em um caixão de madeira. Não sabia como seria seu mundo dali em diante. Apenas rezou para que sua querida mãe protetora estivesse melhor em sua nova morada, livre do sofrimento, da dor, dos remédios e de todo aquele ambiente triste de hospital.

19 junho 2009

Bom dia

Para: Joseane
Assunto: Importante, leia.

Faz tempo que eu queria te falar isso, e eu sei, juro mesmo, que essa não é a melhor maneira. Mas tem outra? Acho que não, né? Infelizmente, e hoje eu tenho certeza de que isso é muito mais infeliz do que qualquer outra coisa, é isso que temos.
Antes de mais nada quero te agradecer. Por tudo que tu me deu, por tudo que tu não me deu, por tudo que deixou eu te dar. Por tudo que criamos, por tudo que recriamos, por tudo que destruímos. Tudo feito a quatro mãos, ou como costumo pensar, a dois computadores.
E é isso que me consome, me mata, me angustia. Olhar pra essa tela quadrada, fria, suja, longe, distante, que se desliga com um simples apertar de botão (como se o amor fosse assim fácil de desligá-lo).
Essas teclas com tantas letrinhas, tantas palavras, números e códigos. Essas letrinhas que são nossa história. E me desculpe se sou grosseiro, se não tenho mais forças, esta que eu deveria ter e que tive por tanto tempo.
Nossos sonhos eram lindos, nossas expectativas também. Só que já foram. Perdi minhas esperanças, perdi a minha compulsão, a minha vontade, as minhas cores que tanto pintamos juntos.
Prefiro te ver de longe, te idolatrar e fazer de ti um monumento. Algo lindo, bem tratado, refinado, feito a mão. As minhas mãos, porque tudo que tive contigo, fui eu que criei, que cultivei segundo a segundo para que não se perdesse.
Prefiro ter a tua lembrança assim, de tudo que foi e de tudo que poderia ter sido. Assim não terei o gosto amargo dessa forte decepção, dessa coisa que tinha tanto pra ser e que nunca será. Esse nosso amor de tantos sonhos...
Não duvide por nenhum momento que eu não tentei. Eu tentei, juro. E eu te dizer tudo isso é o ápice das minhas tentativas, é o marco final.
Quero te ver feliz, linda do jeito que sempre foi. Só que eu aqui e daqui não consigo nem ao menos acordar ao teu lado te dizendo bom dia.
Um simples bom dia. Foi isso que eu sempre precisei. Nada além, apenas a possibilidade de olhar nos teus olhos logo ao acordar. O teu olhar que eu nunca senti sobre mim. Os teus olhos tão castanhos. Será que eles brilham do jeito como me parecem aqui de tão longe?
Nós que tínhamos tudo para dar certo. Todas as possibilidades agora me impossibilitam de seguir adiante. Desculpe, cansei. Não há amor no mundo que supere as tantas barreiras que ainda enfrentaremos quando não se tem a outra pessoa com quem dividir. E eu queria, sempre quis, desde a primeira vez que a vi dividir minha vida contigo. Mas você me parece dar mais importância para outras coisas. E dessas outras coisas eu não faço parte. Será que fiz em algum momento?
Às vezes eu chego a duvidar. Tantas promessas, pactos, contratos, acertos pra esse nosso desencontro no final.
Eu quero sentir o gosto, as formas, a vida, o sol das manhãs de domingo sem ter esse peso no meu coração. De tentar ver cores num quadro cinza e caído no chão. Um copo vazio, um vidro quebrado, esse computador queimado, em chamas.
Atear fogo em tudo, é disso que eu tenho vontade. Queimar até o fim esse nosso amor descompassado, e todas essas lembranças que nunca existiram.
Não te digo à deus porque nunca tive a oportunidade de olhar nos teus olhos e dizer olá.
Apenas te desejo uma vida com menos sonhos, com menos expectativas, com menos fantasias, com menos lembranças e com mais realidade.
Pinte o quadro que quiser, mas não o esconda em uma estante qualquer. Mostre ao mundo, às pessoas e se um dia assim quiser, mostre a mim, pois estarei esperando, mesmo sem esperar, o dia em que isso acontecer. O dia que então eu poderei acordar ao seu lado e não precisarei abrir os olhos para ter a certeza de que você está ao meu lado, pois sentirei o teu coração ali comigo, feito a uma só mão.
Marcelo ouviu o telefone tocar. Era Joseane. Hesitou por uma fração de segundos se atenderia ou não. Aqueles segundos que decidiriam seguir adiante ou estagnar.
Ao ouvir aquela voz tão doce que vinha do outro lado do telefone, sentiu seu vazio se preencher. De sonhos, de expectativas, de fantasias, de lembranças. Da sua realidade.

17 junho 2009

Conversa entre estrelas

- Noite bonita.
- É. Lua cheia sempre é bom.
- Não tem nenhuma nuvem...
- É... Mas tá chato.
- Por quê?
- Ora, as pessoas só correm o dia todo e, quando chegam em casa, é noite e ela fecham as janelas. De que adianta estarmos aqui?
- Estamos aqui para lembrar.
- Lembrar o quê?
- Lembrar cada sonho que alguém tem. E quem sonha sempre nos olha, mesmo que em um pequeno instante. Fique atenta e perceba.
- Tá... Não vejo nada. Todos estão dentro de casa.
- Olhe ali! Naquela janela!
- Aquela menina?
- Sim! É sempre ela... Toda noite, bem tarde, abre a janela e nos espia... O que será que pensa?
- Talvez nos problemas. Sempre a vejo correr o dia todo!
- Talvez se lembre dos seus sonhos...
No quarto, ela pensa:
- Aí estão vocês de novo. Toda noite fico aqui olhando para as estrelas: meus sonhos perdidos na imensidão do céu! Queria poder conversar... Pena que as estrelas não falam.
Sorri, fecha a janela e dorme.