10 novembro 2010

Dois dias

Entrou na escura avenida aumentando a velocidade. Mãos trêmulas ao volante, suor escorrendo pelo rosto e uma desesperada vontade de não parar. Seguir em frente, aumentando a velocidade, seguir indo, sempre. Ele fechou os olhos por um segundo.
Choque – um caminhão acelerava com direito no sinal verde.

Algumas horas antes.

Finalmente foi chamado. Entrou sorrindo, aliviado por poder resolver esse assunto e ir para casa. O problema intestinal iria facilmente ser solucionado com medicamentos e boa alimentação.
- Você tem câncer. Choque.

Um dia antes.

Chegou cansado do trabalho em casa, queria tomar um bom banho, jantar com a esposa e ver alguma comédia na televisão para não pensar em nada. Logo que entrou percebeu a TV desligada e estranhou, foi procurar Cecília. Ela estava no quarto do casal, sentada na cama com as pernas cruzadas e um olhar incomum. Ele se aproximou, perguntou o que estava acontecendo.
- Estou grávida. Choque.

05 novembro 2010

Choque

Todas haviam feito o serviço, só esperavam pela última, a mais velha, aquela que ninguém acreditava. Foi então que a galinha mais nova, gaiata, cacarejou:

- E aí minha tia? Quer que eu choque pra ti?

A senhora galinha ergueu o pescoço, olhou para cima e cacarejou muito alto:

- Choqueeeeee!

Em três segundos o galinheiro estava tomado pelo batalhão de choque da brigada militar, entraram atirando. Gemas, sangue e penas se esparramaram pelo lugar. No canto, tremendo, balbuciando algo que não se entendia, estava a galinha moça. Veterinários atestaram estado de choque.

Nostalgia

Pedi uma cerveja.

Ao ver a garrafa, lembrei do guaraná frisante que todos os dias comprava no bar da esquina. O tio me dava o troco em bala.

Bons tempos do guaraná frisante.

Quando eu voltava pra casa, todos na mesa de jantar estavam esperando, a mãe sempre fazia umas comidinhas gostosas, cheirosas. A mãe também era muito cheirosa, o pai vivia dizendo isso. Jantava, fazia o tema e ia dormir.

Bons tempos do guaraná frisante.

Pedi outra cerveja.

Distante está

Distante está,
meu coração do teu.
E minha língua suplica aproximar dos teus lábios.

Distante está,
meu coração do teu.
E minha saliva implora misturar com teu suor.

Distante está,
meu coração do teu.
E minha pele roga friccionar na tua.

Distante está,
mas esqueça o maldito coração.
Como a um velho louco não daremos bola,
vamos viver de tesão.

01 novembro 2010

GOSTO

Se um gosto pudesse ser o gosto da nostalgia seria o das balinhas Xaxá.

Abacaxi era o que vinha escrito na embalagem, mas hoje quando eu penso no gosto dela, é gosto de esperar o sinal bater para o recreio, é gosto de se preocupar com questões da profundidade da tarefa que tem que ser feita para segunda-feira ou em qual poema vou declamar no dia das mães; gosto de não ter que ficar escolhendo uma roupa para sair sexta à noite, esperando que ele me ache bonita, de não ter que lavar a roupa todo domingo ou pagar a conta do celular, gosto de brincar de esconde-esconde no final da tarde, de estátua e de casamento-atrás-da-porta pela manhã, gosto de olhar o mapa e viajar para vários países em uma leitura rápida do Almanaque Abril, gosto de dançar até começar a doer do lado da barriga e de fazer competição pra ver quem come mais brigadeiro na festinha de aniversário.

O gosto é doce, a lembrança chega salgada dos olhos até a boca.

Alessandra Boos