24 junho 2009

Memórias.

“Observei o anoitecer calmamente. Era verão, mas eu não o desfrutava como a maioria. Aliás, sequer o desfrutava. Já fazia meses que eu estava naquele quarto branco de hospital, dormia numa cama alta de hospital, sentia o cheiro de comida de hospital. As pessoas, lá, eram gentis. Mas aquele não era meu lar. Nunca quis viver por muito tempo no centro da cidade, gosto da calmaria dos lugares mais afastados. Mas não tinha escolha. Aquela era uma situação difícil para mim e para todos.”
Naira, ao escrever, sentiu-se escrevendo sua autobiografia. Parou. Não queria que aquele projeto de texto tivesse um tom, talvez, banalizado. Ela precisava escrever sua história, mesmo que só ela tivesse acesso e relesse tantas e tantas vezes.
Continuou:
“Soube da doença, mas ela foi fulminante. Não deu tempo. Larguei tudo em casa para dedicar-me ao hospital por inteiro: da cama ao banheiro, volta pra cama, troca de roupa, sai a caminhar lentamente pelos corredores, chega à sala para fazer novos exames, o que será que está acontecendo? De volta ao quarto, familiares chegam, bem como os atenciosos enfermeiros, médicos aparecem para fazer suas visitas... de médico, chegam as refeições, maçã, sopa, pãozinho, leite, geleia. Alimentar-se é difícil, cada vez mais e...”
Aquelas lembranças são demais para Naira, que chora compulsivamente. Não queria guardar essas lembranças tão tristes de sua mãe. Não queria passar pela próxima etapa, a de vê-la em um caixão de madeira. Não sabia como seria seu mundo dali em diante. Apenas rezou para que sua querida mãe protetora estivesse melhor em sua nova morada, livre do sofrimento, da dor, dos remédios e de todo aquele ambiente triste de hospital.

19 junho 2009

Bom dia

Para: Joseane
Assunto: Importante, leia.

Faz tempo que eu queria te falar isso, e eu sei, juro mesmo, que essa não é a melhor maneira. Mas tem outra? Acho que não, né? Infelizmente, e hoje eu tenho certeza de que isso é muito mais infeliz do que qualquer outra coisa, é isso que temos.
Antes de mais nada quero te agradecer. Por tudo que tu me deu, por tudo que tu não me deu, por tudo que deixou eu te dar. Por tudo que criamos, por tudo que recriamos, por tudo que destruímos. Tudo feito a quatro mãos, ou como costumo pensar, a dois computadores.
E é isso que me consome, me mata, me angustia. Olhar pra essa tela quadrada, fria, suja, longe, distante, que se desliga com um simples apertar de botão (como se o amor fosse assim fácil de desligá-lo).
Essas teclas com tantas letrinhas, tantas palavras, números e códigos. Essas letrinhas que são nossa história. E me desculpe se sou grosseiro, se não tenho mais forças, esta que eu deveria ter e que tive por tanto tempo.
Nossos sonhos eram lindos, nossas expectativas também. Só que já foram. Perdi minhas esperanças, perdi a minha compulsão, a minha vontade, as minhas cores que tanto pintamos juntos.
Prefiro te ver de longe, te idolatrar e fazer de ti um monumento. Algo lindo, bem tratado, refinado, feito a mão. As minhas mãos, porque tudo que tive contigo, fui eu que criei, que cultivei segundo a segundo para que não se perdesse.
Prefiro ter a tua lembrança assim, de tudo que foi e de tudo que poderia ter sido. Assim não terei o gosto amargo dessa forte decepção, dessa coisa que tinha tanto pra ser e que nunca será. Esse nosso amor de tantos sonhos...
Não duvide por nenhum momento que eu não tentei. Eu tentei, juro. E eu te dizer tudo isso é o ápice das minhas tentativas, é o marco final.
Quero te ver feliz, linda do jeito que sempre foi. Só que eu aqui e daqui não consigo nem ao menos acordar ao teu lado te dizendo bom dia.
Um simples bom dia. Foi isso que eu sempre precisei. Nada além, apenas a possibilidade de olhar nos teus olhos logo ao acordar. O teu olhar que eu nunca senti sobre mim. Os teus olhos tão castanhos. Será que eles brilham do jeito como me parecem aqui de tão longe?
Nós que tínhamos tudo para dar certo. Todas as possibilidades agora me impossibilitam de seguir adiante. Desculpe, cansei. Não há amor no mundo que supere as tantas barreiras que ainda enfrentaremos quando não se tem a outra pessoa com quem dividir. E eu queria, sempre quis, desde a primeira vez que a vi dividir minha vida contigo. Mas você me parece dar mais importância para outras coisas. E dessas outras coisas eu não faço parte. Será que fiz em algum momento?
Às vezes eu chego a duvidar. Tantas promessas, pactos, contratos, acertos pra esse nosso desencontro no final.
Eu quero sentir o gosto, as formas, a vida, o sol das manhãs de domingo sem ter esse peso no meu coração. De tentar ver cores num quadro cinza e caído no chão. Um copo vazio, um vidro quebrado, esse computador queimado, em chamas.
Atear fogo em tudo, é disso que eu tenho vontade. Queimar até o fim esse nosso amor descompassado, e todas essas lembranças que nunca existiram.
Não te digo à deus porque nunca tive a oportunidade de olhar nos teus olhos e dizer olá.
Apenas te desejo uma vida com menos sonhos, com menos expectativas, com menos fantasias, com menos lembranças e com mais realidade.
Pinte o quadro que quiser, mas não o esconda em uma estante qualquer. Mostre ao mundo, às pessoas e se um dia assim quiser, mostre a mim, pois estarei esperando, mesmo sem esperar, o dia em que isso acontecer. O dia que então eu poderei acordar ao seu lado e não precisarei abrir os olhos para ter a certeza de que você está ao meu lado, pois sentirei o teu coração ali comigo, feito a uma só mão.
Marcelo ouviu o telefone tocar. Era Joseane. Hesitou por uma fração de segundos se atenderia ou não. Aqueles segundos que decidiriam seguir adiante ou estagnar.
Ao ouvir aquela voz tão doce que vinha do outro lado do telefone, sentiu seu vazio se preencher. De sonhos, de expectativas, de fantasias, de lembranças. Da sua realidade.

17 junho 2009

Conversa entre estrelas

- Noite bonita.
- É. Lua cheia sempre é bom.
- Não tem nenhuma nuvem...
- É... Mas tá chato.
- Por quê?
- Ora, as pessoas só correm o dia todo e, quando chegam em casa, é noite e ela fecham as janelas. De que adianta estarmos aqui?
- Estamos aqui para lembrar.
- Lembrar o quê?
- Lembrar cada sonho que alguém tem. E quem sonha sempre nos olha, mesmo que em um pequeno instante. Fique atenta e perceba.
- Tá... Não vejo nada. Todos estão dentro de casa.
- Olhe ali! Naquela janela!
- Aquela menina?
- Sim! É sempre ela... Toda noite, bem tarde, abre a janela e nos espia... O que será que pensa?
- Talvez nos problemas. Sempre a vejo correr o dia todo!
- Talvez se lembre dos seus sonhos...
No quarto, ela pensa:
- Aí estão vocês de novo. Toda noite fico aqui olhando para as estrelas: meus sonhos perdidos na imensidão do céu! Queria poder conversar... Pena que as estrelas não falam.
Sorri, fecha a janela e dorme.